2 - Lugares onde a luz não chega

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Cecília mergulhou no Escuro. Era mais do que apenas se deitar na grama e fechar os olhos: era desligar todos sentidos, deixar de lado a realidade. Se é que existem lados ou paredes no Escuro. Talvez houvessem paredes pretas camufladas e muito distantes de onde Cecilia estava, porque não importava o quanto caminhasse pelo espaço, nunca encontrou mais nada nem ninguém.

O Escuro: um lugar completamente inepto, solitário, tranquilo, sem limites. Ou então com limites grandes demais, impossíveis de se alcançar, apenas uma caixa descomunalmente enorme criada em seu cérebro igualmente inepto. Fosse qual fosse a verdade, nem sequer importava. Contanto que ninguém tirasse a tampa de sua caixinha pessoal, estaria tudo bem.

Contudo, era uma felicidade temporária, porque uma hora ela sabia que precisaria acordar. Voltar à realidade é a pior parte, todo o peso tirado de si voltaria de uma vez com um baque pelo corpo todo, as cores ficariam brilhantes demais e os sons, muito agressivos. A carga de adrenalina sempre a fazia o desespero aflorar com as tonturas. Às vezes minutos e outras, horas. Não dificilmente só conseguia coragem para voltar depois de anoitecer, mesmo sendo complicado calcular a passagem de tempo quando meses se passam em horas e segundos em minutos.

Se pudesse escolher, Cecilia escolheria nunca mais retornar para uma realidade onde não existia nada. “Nada” do jeito ruim, não do bom como o Escuro. Na briga entre negatividade e indiferença, a indiferença vencia com folga.

Mas é impossível. Precisava abrir os olhos.

Imediatamente, o baque.

O sol estava brilhante demais,

O vento tomava seus ouvidos,

A cor do sangue por todo o corpo era forte e machucava os olhos.

Logo, constatou duas coisas:
A primeira foi que tudo aquilo não era seu. Sem nenhum corte em evidência, a conclusão foi tão óbvia quanto chocante: havia matado alguém. Se não diretamente, pela perda rápida de sangue que agora a manchava.

A segunda coisa notada ao olhar em volta foi que não estava na mesma posição onde ficara. Sempre marcava a exata localização e posição com cuidado. Antes, na grama, aproximadamente sete passos para leste da rodovia e virada à oeste, na direção de uma árvore particularmente grande do lado oposto do asfalto, ainda de manhã. Agora, inclinava-se levemente à noroeste e parecia passar um pouco do meio-dia.

Sua cabeça começou a doer. É a dor que parece pesar, pressiona seu crânio até conseguir sentir o cerebelo com as pontas de dedos imaginários. Dedos finos, suaves ao toque, porém diretos e firmes quanto necessário, similares aos de uma criança, brincando de modelar com sua massa cinzenta. Amassando, amassando e amassando, até deformar, até seus pensamentos vazarem pelos ouvidos.

Tlec

Estalou os dedos da mão esquerda próxima ao ouvido repetidas vezes.

Tlec, tlec, tlec, tlec

É uma maneira eficiente de despertar a audição e fazer o chiado agudo ocasionado pela pressão do ar parar. Distrair os ouvidos, basicamente.

Tlec       
                                                  tlec
Tlec                 tlec
   
    Tlec                              tlec
                          Tlec

A mão direita foi incluída na sinfonia.

Estipulava sua idade entre 17 e 23 anos. Apesar da feição cansada, havia a vitalidade de alguém bem jovem, então seria difícil cravar um número exato. Além do fator “desnutrição” afetar diretamente a percepção de idade pelo desenvolvimento do corpo.

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