36.
36 não era um número tão ruim, pelo menos era o que ele pensava até aquele momento.
36 era o ano que correspondia a primeira vez que as "Perseidas"* fora descrita, provavelmente era um evento incrível de se observar, entretanto naquele momento ele estava se sentindo como se fizesse parte da ocasião, representando um dos meteoros do belo fenômeno, pois estava prestes a entrar em combustão.
36 era o número que o termômetro apontava. 36ºC, sensação térmica: inferno. Provavelmente naquele ponto, ele já havia amaldiçoado aquele calor bem mais do que apenas 36 vezes.
*Perseidas: chuvas de meteoros, descrita pela primeira vez em 36, no Extremo Oriente
O garoto solitário passava os dias no meio daquele vasto deserto, era um local um pouco difícil de se viver, sua única rota segura de saída dali, era quando alguém aparecia para trazer suprimentos. Porém, aquele local trazia um silêncio e calmaria ideais para suas maratonas de leituras. Era um leitor assíduo, tinha bastante confiança quanto a isso.
Evan não era uma pessoa muito positiva, mas naquele momento, olhou para os céus sem nuvens através da abertura de sua tenda, e torceu por uma chuva para refrescar seu fim de tarde. Ao longe, pôde avistar no horizonte uma figura distorcida que se aproximava. "Ah! Já é terça-feira", concluiu. Pegou seu turbante e se dirigiu para o lado de fora, ficando à espera da sua aguardada visita.
A figura no horizonte foi ficando mais clara conforme se aproximava, era Aluhaba Mohammed montado em seu camelo. Um amigo de longa data do desajeitado protagonista. Era um cara boa pinta, usava um grande turbante laranja, e cismava que sua Kandura* não era um vestidinho básico.
*Kandura: roupinha de árabe (vestidinho branco lá)
Em contraste com Evan, ele era um cara animado e positivo, fazia visitas todas as terças do mês, trazendo consigo uma light novel nova que o amigo encomendava. Era um bom amigo.
Mohammed desceu de seu camelo, e se direcionou a seu amigo.
- Já louvou o sol hoje?
- Acho que é a única coisa que posso fazer, já que o sol é tudo que tem para ser louvado por aqui.
- Não seja um herege, PRAISE THE SUN! - insistiu.
- Gostaria de louvar a chuva de vez em quando, já faz meses que não vejo uma por aqui - resmungou Evan.
O que não faltava eram motivos para o jovem estar emburrado, os dias se tornavam cada vez mais quentes e abafados, sem o menor sinal de chuva. Não era segredo para ninguém os vastos períodos de estiagem que assombravam o povo por aquelas bandas.
Os dois se sentaram ao lado de fora numa pequena área com sombra, e começaram a divagar sobre momentos nostálgicos vividos por eles durante o grande período de amizade. Estavam tão distraídos que não perceberam o descuido de Mohammed que havia esquecido de prender seu animal a tenda, quando notaram já era tarde demais, o camelo já estava distante. E foi assim que os dois ficaram inacessíveis no meio daquele deserto.
O desespero bateu, nenhum dos dois fazia ideia de como sair dali.
- COMO VOCÊ NÃO AMARRA O CAMELO!! - exclamou Evan.
- COMO VOCÊ MORA NO MEIO DO DESERTO E NÃO TEM UM?! - Evan se sentiu atacado, por que ele teria um camelo? Mohammed sabia muito bem que ele não gostava de animais, muito menos um grande que fede e baba. - Tá legal, agora como eu vou embora?
- Vai ter que esperar, talvez Agatha passe aqui amanhã para trazer mais suprimentos.
Os olhos de Mohammed brilharam por um momento, Agatha era a amiga de infância de Evan, de vez em quando ela o visitava para o abastecer com comida e água. Mohammed morria de amores pela garota, ela era uma mulher deslumbrante e bela, pelo menos era o que ele achava, seus olhos pareciam muito atraentes quando ele olhava através do véu da burca, "então o resto também deve ser", supunha ele.
Os dois aceitaram que não havia muito o que fazer e decidiram aguardar pelo dia seguinte.
A noite passou, e o dia raiou, fazendo com que aquele majestoso e ardente sol tomasse novamente conta do céu.
Logo pelo começo da manhã Agatha chegou e Mohammed se deleitou ao ver um pedaço do calcanhar que ela deixou escapar enquanto descia de seu camelo.
Infelizmente não conseguiu apreciar aquele pequeno momento o bastante, pois logo se iniciou uma tempestade de areia, fazendo com que todos entrassem em pânico. Um a um correram para adentrar a tenda. Uma pena, pois nem mesmo a pequena moradia improvisada dava conta daquele fenômeno natural assombroso. Evan viu sua casa ser levada e destruída, junto com suas esperanças de presenciar um dia chuvoso novamente. Seus companheiros foram sumindo de sua visão à medida que a grossa nuvem de poeira aumentava e se tornava mais violenta.
Lá estava ele, desgastado, desidratado, sozinho novamente, desiludido e sem motivos para continuar. Ficou à deriva no meio do deserto, até perder a consciência não muito tempo depois por insolação e desidratação.
- Moço! - Evan sentiu seu corpo chacoalhar - Ei, moço! Acorda! - De repente abriu seus olhos abruptamente ao sentir água escorrendo pelo seu rosto.
Olhou ao redor e se deparou com nada além de um vasto deserto, e um garoto com rosto estranhamente familiar que o encarava com uma garrafa agora vazia na mão.
- O que aconteceu? - se dirigiu ao garoto
- Não sei ao certo, te encontrei desidratado e jogado no chão, havia alguns cartazes de procura-se por você na cidade vizinha. Aparentemente você sumiu uns dias atrás dizendo que iria entrar em um isekai, sua família estava preocupada. Estavam achando que não voltaria mais para casa e já estavam desmontando seu quarto e jogando fora seu Dakimakura da Nadeshiko - informou o garoto.
Como assim?! Se livrar da Dakimakura era uma afronta. Simplesmente imperdoável. Entretanto, outro pensamento se passou em sua cabeça.
- Calma, casa? E minha tenda? Meus amigos?
- Do que você está falando? Fui seu vizinho por 7 anos, e nunca te vi numa tenda, muito menos com amigos.
Foi então que a ficha de Evan caiu, ele se lembrou de tudo. Tinha decidido se aventurar e sair do seu quarto, entretanto isso aconteceu de forma muito despreparada, perdeu seu meio de transporte e ficou a mercê, no meio do deserto, sem nenhum suprimento, até que acabou colapsando. Tudo não passava de apenas um delírio da mente do jovem rapaz.
A confusão o invadia, será que perdera a sanidade? Em meio a tantos pensamentos, sentiu uma leve gota cair em sua bochecha, ele não podia acreditar no que estava presenciando. A cena foi majestosa, a vista exuberante daquele vasto deserto sendo umidificado pelas singelas gotas de chuva, ficaria para sempre em sua cabeça. A chuva foi engrossando, e junto com ela as lágrimas do pobre rapaz, não conseguiu se conter, e cedeu ao pranto. "Mohammed gostaria de ver isso", foi o que se passou em sua cabeça naquele momento "caso ele existisse, é claro".
E foi assim que Evan finalmente se agraciou com a chuva, aceitando sua esquizofrenia, e imaginando sua boa noite de sono com o som da chuva batendo no telhado.
FIM.
NOTAS:
História verídica.
Agradecimentos:
Ao Evan, que me fez rir tanto durante uma conversa brisada, que me instigou escrever essa história baseado nisso. Que Alá esteja com você 🙏.
Escrita por:
Palin-Palidaço-Palorenço-Palindromo
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Evangelion adventures: Aluhaba Mohammed e a busca da chuva
General FictionEle ansiava pela chuva. Aguentar o calor por tanto tempo pode parecer loucura, mas locura mesmo é viver dentro da sua cabeça. Acompanhe Evan em sua saga nem tão solitária assim (ou será que não).