O MISTÉRIO DE MARIA ROGET

31 4 1
                                    

  Depois de ter ouvido o que recentemente ouvi, seria por certo estranho que eu permanecesse em silêncio a respeito do que tanto vi como ouvi já faz tempo. Após o desenlace da tragédia que envolveu a morte da L'Espanaye e sua filha, meu amigo Dupin não prestou mais atenção ao caso e recaiu nos seus velhos hábitos de extravagantes devaneios. Sempre predisposto às abstrações, não tardei em segui-lhe o exemplo, e, continuando a ocupar nossos aposentos no bairro de São Germano, abandonamos ao vento o futuro e adormecemos tranquilamente no presente, tecendo de sonhos o mundo estúpido que nos cercava.

  Mas esses sonhos não ficaram inteiramente sem interrupção. Pode-se de pronto supor que a parte desempenhada por meu amigo no drama da Rua Morgue não deixara de causar impressão na imaginação da polícia parisiense.

  Entre seus agentes, o nome de Dupin tinha-se tornado familiar. Não tendo sido o simples caráter daquelas induções, por meio das quais havia ele destrinçado o mistério jamais explicado, mesmo ao Chefe de Polícia, ou a qualquer indivíduo, a não ser eu mesmo, não é de admirar, sem dúvida que o caso fosse encarado como pouco menos que miraculous, ou que as habilidades analíticas de Dupin houvessem adquirido para ele o crédito da intuição.

  Sua franqueza o teria levado a libertar qualquer perguntador de tal preconceito, mas seu temperamento indolente o impedia de qualquer agitação ulterior a respeito dum episódio cujo interesse de há muito cessara para ele. Por isso aconteceu que veio a tornar-se o alvo dos olhares policiais e poucos não foram os casos em que fizeram tentativas, na chefia de polícia, para que ele deles se encarregasse.

  Um desses casos mais notáveis foi o do assassinato de uma moça chamada Maria Roget. Este fato ocorreu cerca de dois anos depois do bárbaro crime da Rua Morgue. Maria, cujos nomes de batismo e de família chamaram desde pronto a atenção por sua semelhança com os da desventurada vendedora de charutos, era filha única da viúva Estela Roget. O pai morrera na infância da criança e, da ocasião de morte até dentro de oito meses antes do assassínio que forma o assunto de nossa narrativa, mãe e filha tinham vivido juntas na Rua Pavée Saint-André, mantendo aquela pensão, ajudada por Maria. As coisas continuaram assim, até haver esta última atingido os vinte e dois anos, quando sua grande beleza atraiu a atenção dum perfumista, proprietário duma das lojas do rés-do-chão do Palais Royal, cuja clientela consistia principalmente de audaciosos aventureiros que infestavam aqueles arredores. O Sr. Blanc não duvidava das vantagens que adviriam da presença da formosa Maria em sua loja de perfumes e suas generosas propostas foram avidamente aceitas pela moça, embora com um pouco mais de hesitação da parte de sua mãe.

   As previsões do lojista se realizaram e seus salões em breve se tornaram famosos, graças aos encantos da alegre grisette. Encontrava-se ela no emprego havia quase um ano, quando seus admiradores ficaram aturdidos com sua súbita desaparição da loja. O Sr. Le Blanc não soube dar explicações de tal ausência e a Sra. Roget estava quase louca de ansiedade e terror. Os jornais se apoderaram imediatamente do assunto e a polícia se aprestava a fazer sérias investigações, quando, uma bela manhã, uma semana após, Maria, de boa saúde, mas com um ar de leve tristeza, reapareceu no seu balcão habituado da perfumaria. Toda investigação, exceto as de caráter particular, foi, sem dúvida, imediatamente sustada. O Sr. Le Blanc mantinha a mesma ignorância anterior absoluta. A todas as perguntas que lhe faziam, Maria, bem como sua mãe, respondia que passara a semana na casa dum parente, no interior. De modo que o caso não foi adiante e em breve todos o esqueceram, pois no propósito evidente de livrar-se duma curiosidade impertinente, em breve se despedia definitivamente do perfumista e recolhia-se ao abrigo da residência de sua mãe, na Rua Pavée Saint André.

  Foi cerca de cinco meses depois dessa volta ao lar que seus amigos se alarmaram com sua súbita desaparição, pela segunda vez. Três dias se passaram e nada se ouvia falar a respeito dela. No quarto dia, seu corpo foi encontrado boiando no Sena, perto da praia fronteira ao bairro da Rua Saint-André e a um ponto não distante das cercanias pouco frequentadas da Barreira do Roule.

Contos de E. A. PoeOnde histórias criam vida. Descubra agora