Não pode sair

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A descida deslizante fez esta alma cair e sentir o impacto de seu corpo sobre o chão de asfalto. O amarelo que está colorindo um céu ofuscante, separa dois lugares com uma neblina intensa, que se desfaz quando chega à superfície dura e se refaz conforme a água se condensa no alto. Deve ser todos os dias desse jeito; cíclico e importante.

Não há uma outra alma no local. A rua vazia traz um ar medonho para a jovem que se levanta com dificuldade após a queda; ainda não sabe como não quebrou algum osso. Ela olha para todos os lados possíveis e não consegue enxergar algo que a ajude além de um bonito edifício branco com detalhes prateados. Não há outra saída além de correr para esse lugar e procurar alguém que possa se comunicar sem conflitos. Entretanto, quando se aproxima e seus olhos piscam, ela se vê em uma sala que, diferentemente da construção anterior, possui marcas douradas em todos os cantos. Seria ouro?

Pode afirmar com toda a certeza que a propriedade é de uma pessoa com muito dinheiro. Porém, um lar abandonado. Móveis, quadros e uma taça na mesa de centro com um líquido desconhecido estão ali há anos. O pó visível se instala em harmonia com alguns insetos, dos pequenos aos maiores. A pele da garota se arrepia ao caminhar lentamente pelo local gélido.
Sente uma pressão em seu corpo quando nota um pequeno caderno aberto em cima de uma das poltronas que compõem o cenário; páginas amareladas que têm palavras ilegíveis. A caneta que possivelmente foi usada para a escrita está derrubada sobre o grande tapete.

Há uma porta em sua frente. Um espelho esbelto está na madeira com puxador dourado. A moldura do espelho é repleta de pedras verdes que aparentam ter muito valor; são as únicas que brilham em todo aquele silencioso espaço peculiar. Os olhos dela são refletidos na superfície, ainda que empoeirada é observável seu olhar negro. Instantaneamente, uma voz fina ecoa. O grito a choca de tal modo que precisa tampar seus ouvidos. Porém, ainda com essa atitude, o som consegue perturbar sua mente. Quando percebe, não hesita em tentar abrir a porta que impede a continuação de seu caminho; sem sucesso. Caminha com dificuldade extrema até às aberturas que se parecem com janelas, mas o vidro que as tampa está emperrado por algo. Sem ter para onde ir, resolve se encolher no chão atrás de um sofá vermelho de veludo. Ao fechar seus olhos por alguns segundos, o alarido se transforma repentinamente em um sussurro compreensível: "não pode sair, não pode sair, não pode sair". O desespero da voz fina é derramado em repetições que têm seu fim no despejar de lágrimas; um choro sentido e baixo que some quando a garota abre seus olhos.

O sufoco que pressiona seu peito a faz se pôr de pé. A vontade de querer sair daquela localidade é maior que qualquer pensamento curioso em relação aos velhos objetos espalhados pelo cômodo que se estende para o lado esquerdo, em uma passagem atrativa por causa de sua luz amarelada. Desde quando há outra parte para se olhar? Plantas decoram a abertura. Então há mais vida? Muitos fios de cabelo estão jogados no chão da nova área. Coroas estão desenhadas nas paredes descascadas. Tudo em ruínas; quebrado e despedaçado como um fim inesperado de dor e desonra. Com certeza houve alguma agitação. Talvez uma fuga desorientada e inesperada?

Uma espingarda parece estar bem fixada em uma das paredes. É possível imaginar o quanto aquele item sempre roubou toda a atenção da região clara. Qual será a história dessa arma? Será que alguém já a usou para cessar a respiração alheia? Alguns quadros pendurados estão tortos, mas um em específico parece não ter sido abalado em comparação aos outros. É a imagem de um homem com barba e cabelo coberto por quepe. O número 457 foi rabiscado sobre a moldura desse quadro. A luz que vem de uma parede derrubada impede que o olhar do rapaz seja observado.

A saída finalmente é deslumbrada. Ao passar para fora do cômodo, a jovem se vê livre da tormenta que seu coração sentia. Enquanto caminha, nota que está em lugar diferente novamente. Parece estar saindo do edifício branco que viu pela primeira vez. Uma fonte decorativa mostra o quanto a saída consegue ser desejada por todos que um dia foram presos injustamente.

Os passos da jovem entram em harmonia com os de quatro senhoras que passam ao seu lado. Seus vestidos pretos gritam o socorro escondido do coração de cada uma delas; elas são viúvas infelizes com cicatrizes de um passado doloroso.
Quando tenta falar com essas, a garota é interrompida por uma voz suave que sussurra em seu ouvido: "tudo ficará bem". Em seguida, um líquido escuro que escorre da fonte, ocasionando a falta de controle e medo alarmante. Seus pés se agitam, mas não são mais rápidos em comparação às grandes mãos tingidas de um preto brilhante que saem do fundo da fonte antes bonita.

Uma alma amedrontada é tomada por essas mãos impiedosas, que a puxam para o lugar onde deve estar: afundada em um luto profundo, de uma jovem moça que perdeu tudo que tinha quando o estopim soou e seu cônjuge guerreou. Finalmente se senta no sofá de veludo e termina de tomar seu vinho tinto, ao mesmo tempo em que se lamenta em seu diário amaldiçoado.
Ele não poderá sair da sepultura 457 e sua eterna companheira não pode sair das ruínas.








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