Fim de tarde de um domingo pós-Natal. Época de revisão de fim de ano, no início da inútil última semana do ano. Semana que parece perdida entre a maioria que não vai trabalhar e os que não querem, mas são obrigados a aguentar os que tem mais sorte. Atrito iminente, pensou.
Ele já tinha ficado pensativo pelo fim de semana no sitio com os 3 filhos. O ocaso do domingo já seria motivo de pensamentos de fim de ciclo, mas o semanal. Na última semana do ano então, a revisão seria mandatória. (já sei que pensou que digitei errado.. que diabos é ocaso?. Antes do google, você devolvia seu vocabulário em leitura de livros de papel, procurando o significado das palavras no dicionário. Em caso de preguiça ou falta do que fazer, você o desenvolvia preenchendo palavras cruzadas, favorita dos idosos nascidos por volta de 40. Para lhe poupar tempo, leitor, ocaso é o contrário da alvorada. Ajudou? Não? Então, google ai..)
O ambiente favorecia as lembranças. Sitio projetado pelos avós com todo o carinho, para que os netos pudessem crescer felizes, com espaço e contato com a natureza. O avô morreu antes de ver os netos, vítima dos cigarros Marlboro (aquele do cowboy – que tb morreu de câncer de pulmão). Mas revivemos algumas cenas do sitio em que a avó esteve muito presente. Foi uma boa forma de lembrar da sua mãe que se foi há pouco tempo. Lembrou de como a mesa do natal era importante na sua infância. Um esmero para sair muito bem na foto (que seria vista somente dias depois em um papel especial, fixada em processo químico, dominado por japoneses, donos de loja de revelação) Foto para mostrar a fartura e a alegria da família junta, sorridente, alegre, com roupas novas e comidas especiais, nada cotidianas. Lembrou que os filhos quando pequenos odiavam a ceia. Por que colocar uva passas no arroz? O que é um Chester? (nunca vi um vivo). O que é salpicão? Quem é que gosta de maionese de batata a meia noite? Mas era a forma de se mostrar que estávamos todos muito bem e felizes (limitado a quem tivesse acesso ao álbum de papel). Não gosta de tender, lombo ou clericot (google de novo)? Não interessa: ou você jantava antes ou mantinha a pose. Por que o importante era mostrar fartura e felicidade. E rezar a meia noite, véspera de se empanturrar de comida estranha com gente esquisita.
Ele riu quando tirou foto da mesa deste ano. Uma mesa que seria reprovada na sua infância. Somente dois pratos: um spaguetti ao pesto e um file mignon assado ao molho madeira. Spaguetti feito a mao pela talentosa filha assim como o molho pesto. Mas que não levou pinoles da receita original já que estavam muito caros. (por que não compraram na Santa Marcelina, ele escutava sua tia avo falando) Eles não ajudavam a passar a antiga imagem de fatura e felicidade. Ele imaginou a tia avo que tudo fazia para ter uma cia de Natal perfeita na mansão da filha no Morumbi. Esqueçam as fofocas, as intrigas, os boletos vencidos, os casais em separação e a família falida. O imenso peru, o vistoso tender decorado com cravo e a imensa quantidade de sobremesa dava o recado de quão bem estava a família. Ia sobrar muita coisa, mas isso reforçava a tese da fartura. E da-lhe repeteco da comida estranha no dia seguinte. Era a famosa piada de tiozão: hoje tem prato japonês-soborô ou francês sobrodontê.
Ele tirou foto da mesa magra, mas não postou no Instagram (nova forma de mostrar a sua super alegria aos conhecidos). Viu que alguns amigos ainda seguiam a tradição de enganar a todos com mesas fartas e pensou que poderia deixar a família preocupada com a pobreza da ceia.. Riu por que todos estavam muito felizes de comer o que gostam. E sobrou muito (talvez mantendo a tradição da fartura no dia seguinte). A ceia foi ótima, os filhos estavam contentes e estava tudo muito bom mas ele percebeu que estava ficando confuso.. Novas tecnologias, mas a ilusão continuava. Agora mais rápida e de maior alcance, mas a pose continuava. Humanos!!
Velhice foi perceber que algumas coisas mudam e outras não. Nunca contava os dias. Eles passavam trazendo novos desafios, novas conquistas. Não ficava falando de coisas como se fossem antigas, mas como algo que havia passado, sem contar quantos anos. Mas ele não tinha consciência explicita da rapidez que coisas que mudam.. Quando percebeu que os meninos já não mais perguntavam da espingardinha de chumbo do sitio, caiu a ficha de quão rápido passou.
Há poucos anos, tinha que supervisionar quando queriam atirar no alvo e nas garrafas fixadas no banquinho, perto da parede do sitio. Lembrou do seu pai, ensinando-lhe a atirar nas latas que passavam no rio perto de casa. A casa ainda está lá, mas o rio foi encoberto pela via expressa construída para a imensa quantidade de novos carros dos habitantes das muitas casas que vieram depois.
Mas nunca esteve tão bem. Não se sentia velho ou inútil. Não parava para pensar de quanto tempo passou.. Lembrou do texto do curso de inglês quando adolescente-:"We don't stop playing because we grow old;we grow old because we stop playing." (Growing old, Bernard Shaw ) Então se sentia playing.. Se sentia no jogo
Ficou com este pensamento quando voltava para São Paulo. Parou na farmácia para comprar remédio de velho. Foi atendido por uma jovem balconista, de idade próxima de seu filho do meio.. Olhos verdes, loira tingida de cabelo esticado a ferro (lambida por uma vaca, diria a sua mãe). Duas marcas tinham o mesmo remédio e ele perguntou qual seria mais barato. Ela foi dirigindo-se para o caixa e falou: "nois tenta".. Aquilo agitou seu o ouvido como uma bateria da Marques da Sapucaí. Rapidamente pensou : 'E pegadinha!.. Riu e falou "nossa.. duas palavras e dois erros.." Ela lhe olhou com cara de ET e olhou para a colega.. Que erro?.. A colega: nois não, é nos !! e ninguém corrigiu o verbo .. Foi meio assustado e meio resignado ao caixa, pensando que até a língua mudou (ocaso, clericot.. só ele mesmo) Mas ela não ia deixar barato. Afinal, jovem que é jovem acha que a certeza está em serem muitos (já dizia Nelson Rodrigues que idiotas vão tomar conta do mundo; não pela capacidade, mas pela quantidade). Então, ela lhe perguntou se ele era professor de português. Ele pensou que os filhos tinham sofrido com as lições de física clássica (afinal ele gostava da quântica). Ele disse que sim, para encurtar a conversa e não encontrar outras aberrações. Ela lhe respondeu: coitado dos seus filhos. Concordou e saiu pensando o que será que o pai dela fazia?