O início da salvação é o conhecimento da culpa. Sêneca
Olhei para o vaso de camélias, ainda estavam frescas. As deixei sobre a cômoda não havia completado nem ao menos dois dias.
Respirei um pouco mais fundo. A caneca de chá de limão e anis estava acabando, a chuva lá fora era tão intensa que fiz uma nota mental em não sair muito cedo da manhã pelos fundos da casa e colocar parte do quintal em ordem.
Ao lado da cama de minha tia Marta notei o tempo passar como um vento leve que traz sossego.
— Minhas costas doem — reclamou, minha tia, se remexendo na cama.
Ela estava tão frágil e fraca. Em três semanas completara setenta e cinco anos.
Coloquei a xícara da cômoda, ergui meu corpo inclinando-o para ajudá-la a ficar confortável.
— Assim está melhor... — resmungou e suspirou.
— Está próximo da hora do almoço. Vou lhe trazer um prato delicioso de cozido e... — Fiz menção de ir, mas ela segurou firme meu pulso.
Sua mão ossuda estava muito fria. Quando olhei melhor nos seus olhos, eu não encontrei brilho, nem dor e muito menos muito tempo de vida.
— Encontre-a — a súplica saiu de um tom muito firme. — Passei toda a minha vida procurando-a, irei morrer com a culpa de ter perdido...
Toquei em sua mão de pele enrugada. Sentei-me na mesma cadeira em que passei horas a observando.
— Não é culpada de nada. Mamãe a perdoou... — Lembrei um fato que ocorrera horas antes de minha mãe partir por consequência de um câncer. — Desde muito nova, a senhora quem vem cuidando de mim. Além disso, o que aconteceu no passado...
— Ele... — Fez cara de nojo, soltou minha mão e começou a esfregar o corpo, como estivesse suja. Tentei fazê-la parar. — Mate aquele homem e traga ela de volta!
— Tia...
— Prometa — Me pegou pela blusa e me olhando com desespero insistiu: — Prometa-me que vai encontrá-lo, matá-lo e pegá-la de volta...
— A senhora precisa ficar calma, a pressão pode subir.
— Prometa!
Como faria tal coisa? Desde que roubaram a criança, que havia nascido e logo em seguida pedido a mãe, não se sabe mais do paradeiro.
Minha mãe, na época, quem pediu a criança para criar, acreditando que não poderia ter filhos, mas depois do que aconteceu com tia Marta... dela ter sido encontrada em um estado físico e mental tão preocupante, minha mãe a acolheu. Anos depois eu nasci, três anos depois eu a perdi e tia Marta quem cuidou de mim, mesmo com todas as suas limitações no andar, no falar.
— Prometa Julia! — Senti que ela iria chorar.
Cresci observando o desespero contido na procura diária de uma criança que nem sabemos se estar viva.
— Julia!
— Eu prometo, tia, eu prometo...
— Quando a encontrar — me cortou na frase — olhe bem nos olhos dela e, por mim, pesa perdão.
— A senhora fará isso pessoalmente — a encorajei.
Ela negou.
— Peça perdão em meu nome para que minha alma descanse em paz.