More than words

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Sir. Lancelot virou a página do livro, vendo-se imerso na leitura. De início, ao ver tantos servos presos em seus livros vagando distraidamente de um lado para o outro, não imaginou que viria a se tornar um deles, já que Lancelot jamais poderia ser acusado de passar tempo demais em uma biblioteca. Desde os anos de servidão na Távola, seu foco sempre fora o ar livre, em atividades que movessem seu corpo, ou ainda, em refinar sua esgrima. Entretanto, na chaldea viu-se com tempo de sobra em mãos, resolvendo então dar uma chance para o hobbie cada vez mais popular entre seus companheiros desde que a biblioteca foi intituída.

Entre tantas opções, não foi tão difícil escolher um livro que lhe interessasse. De fato 'Sir Gawain and the Green Knight' foi o título que praticamente saltou em suas mãos enquanto os registrava com os olhos e o indicador numa das infinitas estantes. Inicialmente sentiu-se culpado, como se estivesse agindo pelas costas de Gawain, mas surpreendentemente o nome dele estava entre os muitos que haviam emprestado o livro, inclusive o de Sir. Tristan, e decidiu que não seria uma ofensa, afinal, quantos cavaleiros poderiam dizer que tiveram suas aventuras passadas através do tempo pelos livros?

Preferindo sentar-se num local reservado, Lancelot escolheu a mesa mais distante e deixou-se levar pela leitura, descuidando da hora e dos afazeres que faziam parte de sua rotina. Quando leu a última página, ficou a encarar a contra capa, passando os dedos pelos detalhes em dourado no couro.

Lancelot poderia afirmar sem sombra de dúvidas que aquele cuja amizade lhe era mais querida entre os membros da Távola era a de Gawain. Orgulhava-se de saber mais do que a maioria, e conhecer partes que permaneciam ocultas aos demais, mas assumia que aquela história jamais fora compartilhada entre os dois, e acima de qualquer coisa, ele não fora o primeiro a saber.

O cavaleiro do lago tamborilou os dedos na mesa, suspirando ao fechar os olhos. Ele estava sendo infantil. Muito infantil.

— Devo dizer que me surpreende e mesmo que minimamente, me ofende, o fato de preferir a companhia de um livro à minha.

Lancelot abriu os olhos de imediato, o coração pulando uma batida ao sentir a voz de Gawain tão perto de seu ouvido. Sua primeira reação não foi virar-se, mas controlar a própria expressão deplorável. Ele era um tolo. Sua guarda estava completamente baixa.

Com cuidado calculado, virou o tronco na cadeira, espalmando a mão sobre o livro como em apoio ao elevar os olhos para o cavaleiro do sol.

— Gaiwan — reconheceu o óbvio.

— Lancelot — imitou o outro, fazendo uma mesura exagerada.

Lancelot sorriu sem jeito, tanto por finalmente lembrar que deveria tê-lo encontrado na sala de treinamento, quanto pelo livro que tentava tão desonradamente esconder.

— Estive tão absorto que ignorei por completo nosso compromisso. Queira me perdoar.

Gawain apoiou a mão na cintura e sorriu — o sorriso que para Lancelot era o que o nomeava como cavaleiro do sol, tamanha sua capacidade de iluminar o ambiente.

— Não há nada a ser perdoado, Sir. De fato é revigorante vê-lo dedicar-se à leitura. Se me lembro bem, você não era um grande apreciador, e exatamente por isso me pergunto que título chamou-lhe tanta atenção. Talvez devesse lê-lo numa outra oportunidade... — comentou Gawain, curvando-se ligeiramente para frente ao tentar espiar o título.

Lancelot levantou de uma vez, escorando-se contra a mesa, de modo que sua estatura encobrisse o livro. O cavaleiro do lago já estava arrependido de seu ato antes mesmo de finalizá-lo. Não havia nada de errado em ler os feitos de seu amigo de longa data, mas seu ressentimento tolo estava a tirar o melhor dele, todo seu bom senso.

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