Meu corpo balançava com a rapidez do trem. O barulho dos trilhos era alto e quase ensurdecedor naquele vagão. Mesmo com a sufocante fumaça que invadia ou o cheiro nada agradável de maçãs podres, Sebastian parecia contente e satisfeito. Comecei a achar que esse era seu estado natural.
- Vamos chegar a qualquer momento. - Ele disse se segurando na lataria do trem enquanto permanecia sentado com os pés para fora do vagão.
- Você já tá me dizendo isso à no mínimo uma hora. - Me pronunciei tirando o caderno sujo da bolsa.
- É, mas agora é pra valer! - Ele gritou rindo de sua própria voz que pareceu se esvaziar para fora com a velocidade do trem.
Abri o caderno passando as páginas com rapidez. Minhas letras pareciam de uma criança, a mais analfabeta que existe. Peguei o lápis passando-o por meus dedos enquanto encarava a folha em branco.
Paris.
Parecia um sonho.
Lembrei dos jornais que roubava no orfanato, quando dona Mafalda estava ocupada demais transformando a vida de crianças em um inferno, como se a culpa de elas serem órfãs fossem inteiramente delas.
"Cidade dos Sonhos! Venha aproveitar nossos Croissant 's preferidos!"
Via imagens da Torre que parecia ser o principal assunto das pessoas naquele lugar. Tudo parecia perfeito demais para ser alcançado por um menino que não sabia fazer contas de divisão. Talvez imaginava que pudesse, com minha fuga, chegar a algum lugar no interior da Itália, ou quem sabe até em uma fazenda. Mas Paris era algo difícil de acreditar.
O que aconteceria depois? Como iria sobreviver sem ao menos conhecer ninguém? Por que exatamente estava indo para lá? Mas que outro lugar iria...
- Não pense demais. - A voz rouca de Sebastian preencheu meus ouvidos. O garoto sentou ao meu lado, me lançando um sorriso torto. - Meu pai dizia que se pensássemos muito, nossa cabeça acaba explodindo. - Ele faz uma pausa dramática fazendo gestos de explosão com as mãos.
- Não é tão fácil assim. - Eu falo fechando o caderno em minhas mãos e encarando os olhos do menino que me analisava. Péssima decisão. - Eu não sei o que vai acontecer daqui pra frente...- Sussurro olhando para o chão, quando não consigo sustentar nossos olhares. Ele sorri.
- Essa é a graça. - Ele se estica, se ajeitando no chão e colando as mãos atrás do pescoço - Se soubéssemos, a vida seria... - Ele gesticulava com as mãos como se procurasse a palavra correta. - Um livro já lido. Ler pela primeira vez sempre é mais emocionante. - Encaro a paisagem que passava tão rápido quanto meus pensamentos. - Se vamos ser sócios, acho que precisamos nos conhecer.
Sebastian me encarava esperançoso e seus olhos pareciam de um castanho muito claro com a luz do Sol. Pisco algumas vezes pensando em o que falar.
- Acho que sim...
- Então vamos lá. - Ele disse animado. - Eu começo...
Sebastian saiu do meu lado se sentando em minha frente e quase saindo do chão com um movimento brusco do trem. Rimos em sincronia antes de ele se pronunciar.
- Eu sou o melhor pintor de Paris! - Sebastian exclamou fazendo uma pose estranha como se falasse para uma platéia. Seu sotaque francês forçado me fez rir. - Dos Países Baixos para a França! Todos vão conhecer meu nome. - Ele levantou a mão em punho como um super-herói. Sorri para seu pequeno teatro. - Meu pai falava que eu seria um grande homem. E agora, eu tenho certeza. - Seu sorriso pareceu diminuir um pouco, mas o brilho de sua performance não se afetou. - Antes de morrer, meu pai disse que deveria seguir meu coração. Acho que meu coração tá me levando muito longe!
- Como seu pai morreu? - Perguntei divertido antes de me dar conta. Abaixei a cabeça envergonhado pelo minha ousadia. - Não precisa...
- Tuberculose. - Sebastian falou normalmente. - Já faz 5 anos. - Sua voz diminuiu gradativamente e pela primeira vez, ele me falou algo sem sorrir. - Mas ele não foi o único. A tuberculose era uma praga na Holanda. Ficar doente era como tomar água. - Ele disse rindo me arrancando um riso sem graça. - Fiquei na casa de vizinhos. - Ele se aproximou do meu rosto me fazendo engolir em seco. - Que não eram tão bons assim. - Sussurrou como um segredo. - mas eles também tomaram essa água. - Ele disse se levantando e caminhando em círculos. - De qualquer forma, passei por mais casas do que imagina. Já vivi com estrangeiros, nômades, mercenários... - Contabilizou com os dedos enquanto circulava pelo local. - E isso é só o que me lembro. Mas sabe de uma coisa? - Ele se agachou em minha frente, ficando à minha altura. - Gosto de estar só. Decidi isso quando fugi pela primeira vez. Acho que foi da casa dos Hunters...- Ele levantou pensativo, me deixando finalmente respirar. - Quase consegui, se não fosse pela boca grande de uma garota...- Sebastian me encarou como se estivesse montando o rosto da garota em mim. Depois torceu a boca em desprezo antes de voltar a sorrir. - Entre outras coisas, eu sou bem útil. - Ele caminhou até um caixote e tirou de trás dele uma pequena bolsa de couro rasgada, me mostrando um caderno com poucas folhas. Peguei o objeto de sua mão vendo-o sentar de volta à minha frente.
Passei as páginas com o indicador vendo desenhos incríveis nas folhas amareladas. Paisagens com o pôr Sol. Estruturas de casas. Um croissant hiperrealista. Manequins com roupas bem exóticas. Uma mulher sentada em uma janela. Parei no último desenho, encarando o rosto perfeito da mulher. Seus olhos me lembravam os de Sebastian.
- Minha mãe. - Ele disse baixo, como se por um momento estivesse envergonhado. - Ou pelo menos, como acho que ela era. - Ele abaixou a cabeça, mas voltou a sorrir. - Bom, como percebeu, sou desenhista. Mas meu sonho mesmo é pintar. Só que é bem difícil pintar quando não tem material pra isso. - Encarei Sebastian que olhava que ainda olhava para o desenho. - Mas também sou várias coisas. Sou cozinheiro, por exemplo. Já cozinhei para metade de uma fazenda. - Ele disse voltando a fazer pose de super-herói. - E você? - Ele me encarou sorrindo. - Quem você é? - Olhei para seus olhos como se a resposta fosse óbvia.
- Sou Valentim. - Disse tentando sorrir, mas recebendo sua expressão de negação.
- Eu perguntei quem você era, e não qual o seu nome. - Ele disse sentando em posição de índio e esperando minha nova resposta.
Pensei na resposta mais simples que conseguia. Quem eu era? Talvez um garoto que foge de um orfanato sem rumo. Ou um escritor com a caligrafia que não passou do maternal.
- Eu não sei. - Foi a única coisa que consegui falar.
- Vamos, deve ter alguma coisa aí dentro. - Sebastian disse rindo apontando para minha cabeça.
- Acho que só um menino tentando escrever. Não tem muita coisa além disso. Passei minha vida toda no orfanato antes de entrar nesse trem. - Disse como se fosse algo cômico. Mas a expressão séria de Sebastian me fez olhar para a paisagem.
- Bom, acho que tudo tem um motivo. - Ele olhou para a paisagem. - Talvez esse trem te ajude a responder minha pergunta, mas... - Sua fala foi cortada abruptamente me fazendo deixar a paisagem para encará-lo. Sua expressão era neutra enquanto encarava fixamente algum ponto da paisagem. Sua expressão foi se iluminando enquanto o trem buzinava a todo vapor. - Chegamos... - Ele sussurrou com o sorriso mais largo que o vi dar. - Chegamos!
Olhei para o mesmo ponto em que ele observava e por um momento pensei que ele estivesse tendo alucinações antes de ver um pequeno aglomerado de construções no horizonte. A Torre era a única coisa realmente visível naquela distância. Sua ponta acinzentada brilhava no Sol.
- É ela... - Sebastian levantou rápido caminhando até a porta do vagão aberta. - A Torre. - Ele ficou encarando a paisagem antes de se voltar para mim. - Anda, paramos aqui. Paris nos espera, Valentim!
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Pequena Viagem de Grandes Garotos
AdventureJá pensou em descobrir o sentido da vida em um vagão? Uma viagem a Paris nunca foi tão emocionante. Entrar em um trem com um desconhecido talvez não seja tão ruim. Muitas vezes a vida se torna tão monótona que só um amor não tão clichê em uma viage...