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    Tudo pode ser moldado. A pedra mais dura pode virar um diamante raro. Então, por que me contentar com feitiços simples e banais, se posso ser grande e realizar coisas grandiosas?

    Acordei com esse pensamento após a fatídica noite de encantamentos do clã. Estudamos diariamente, por horas, os feitiços e, no fim, essas aprendizes não sabem sequer acender uma vela.

    Jogo o grimório com capa de pele de leopardo no chão, irritada.

    Eu quero mais do que essas mulheres têm a oferecer, e vou conseguir. Desvio os pensamentos enquanto observo pela janela várias crianças andando pelo pomar.

— Mara! — uma voz chama ao fundo do quarto iluminado pela claridade do sol que entra pela janela. Uma das anciãs entra pela porta de madeira do meu pequeno quarto, que divido com outras três jovens.

— Sim, senhora Ramires — digo, enquanto começo a trançar meu cabelo loiro.

— Nossa Mestra deseja conversar com você, minha pequena — avisa com sua voz doce e gentil, adentrando o ambiente.

   A senhora Ramires é uma das bruxas mais fracas do clã, não por falta de capacidade, mas porque lhe tiraram o poder. Contam que ela era muito poderosa, mas o amor a fez se envolver com um jovem rapaz da nobreza. Ele a enganou para usar suas habilidades em benefício próprio. No fim, foi traída pelo coração e jamais pôde exercer sua magia novamente.

— Com certeza vai me impor um castigo por ter queimado o cabelo da menina — digo, relembrando os acontecimentos da noite anterior.

— Se ela fizer isso, será porque você foi longe demais — a senhora pega minha trança e a termina, iniciando outra do outro lado da cabeça.

    Sim, fui longe demais, confesso. Mas não tive a intenção de causar mal algum à minha colega de aula. Apenas quis apressar as coisas. Afinal, não é toda noite que podemos ver o céu estrelado.

— Como é possível perder tanto tempo com algo tão simples e, pior, me fazer perder tempo? Você viu o céu? Estava lindo.

— Sim, eu vi, mas... — ela pausa. — Mara, você é muito mais capaz do que muitas aqui no clã. Lembre-se: somos monstros lá fora, caçadas e mortas todos os dias. Tenha paciência e controle seus impulsos.

   As palavras da senhora Ramires me fazem lembrar de como vim parar aqui: uma mãe morta por animais que dizem agir em nome de um Deus. Que tipo de Deus manda matar uma família inteira?

— É injusto! Podemos revidar e fazer esses assassinos comerem os próprios membros — imponho.

— Não se faz justiça com injustiça. Se revidarmos, muitos inocentes morrerão.

    A senhora Ramires solta meu cabelo e senta-se na cama. A idade avançada não lhe favorece mais.

— Eu só quero que tenhamos paz. Que possamos fazer o que realmente nascemos para fazer. Somos mais que chás e feitiços. Somos a própria magia.

— Sim, nós somos. Você pode e vai fazer muito. Eu insisto: tenha paciência.

    Olho para o rosto marcado pela idade da velha corcunda de olhos cinzentos e cabelos grisalhos. Desejaria ter sua paciência, mas olhar sua vida esvaindo-se a cada dia me faz ansiar pelos segredos do mundo lá fora, além dos portões da fazenda onde estamos escondidas.

    O mundo é mais do que humanos famintos por sangue. Deve ser místico e intenso. E eu almejava conhecer cada detalhe.

    Abaixo a cabeça, sabendo que ela não irá me compreender, e que trará inúmeros argumentos para me convencer de que é errado e que a fazenda é um dos poucos lugares seguros para nós.

— Vá, antes que se meta em mais encrencas. — Aceno com a cabeça e saio do quarto, de paredes de pedra, assim como toda a casa.

   Percorro os corredores até chegar ao cômodo onde a senhora Alice Klyter costuma estar, com seus documentos, livros e pedras.

   Antes de alcançar a porta de madeira vermelha, duas figuras femininas saem. Uma delas é alta, de pele clara e longos cabelos negros; a outra é uma menina da minha idade, com o cabelo chamuscado.

   Dona Vivian entrega algo à menor e sai pelo corredor à direita, sem perceber minha presença.

— Olha quem resolveu dar as caras.

— Eu não queria queimar o seu cabelo, Selene — digo, aproximando-me.

— Já sei, já sei. Porque você só queria ir para o morro ver o céu e as estrelas à meia-noite... Idiota. Ninguém acredita nessa sua história fajuta. — Ela toma o líquido que dona Vivian lhe entregou mais cedo.

— Eu não...

— Pode falar quantas vezes quiser. Ninguém vai acreditar em você. Todos sabem que você é doente, e que essa obsessão pelas estrelas ainda vai matar alguém. — Ela grita, impaciente.

— Na próxima vez, não hesitarei em queimar todo o seu cabelo. Ou quem sabe, queimar você inteira? — retruco, entre os dentes, sabendo que minha bronca seria elevada se queimasse suas roupas naquele instante.

— Viu? Doente. Para sua infelicidade, até o pôr do sol meu cabelo estará belo como sempre.

— Jura? Nunca percebi. Você é tão feia que nem o cabelo da rainha mais bela do mundo lhe traria beleza.

   Vejo a pele clara dela ganhar um tom avermelhado, enquanto suas narinas se abrem e fecham de irritação.

— Se o castigo não for adequado, eu volto para queimá-lo de novo, Selene. — Passo por ela, erguendo o queixo com implicância. Não faria nada, mas ela não precisava saber.

   Bato na porta três vezes, em uma sequência pausada, pedindo permissão para entrar. A porta se abre, revelando a mulher e mais algumas anciãs no quarto repleto de estantes com livros antigos e raros, a maioria sobre o sobrenatural.

— Entre — ela ordena, de costas para mim, folheando seu grimório assustadoramente grande sobre a mesa de madeira rebuscada.

   Baixo a cabeça, ignorando alguns olhares de reprovação, e caminho até o centro da sala.

— Levante sua face, Mara Le Fay — a bruxa impõe, com sua voz firme.

    Vejo em sua mão a varinha contorcida, marcada pelo uso, enquanto ela me encara com um olhar negro, em contraste com a pele branca.

— Você sabe por que está aqui e o quanto foi errado o que fez — começa a senhora Klyter, virando-se para mim, enquanto seus cabelos esvoaçam com o vento que entra pelas janelas do cômodo. — Você descumpriu a regra mais importante do nosso clã: proteger nossas irmãs.

— Sim, senhora — respondo, deslizando as mãos pelo meu vestido. Não por vergonha, medo ou arrependimento, mas porque, independentemente da punição, eu faria de novo.

— Você é muito jovem e poderosa, Mara, mas...

— Você é muito jovem e poderosa, Mara, mas

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⏰ Última atualização: Nov 25 ⏰

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