Capítulo Único

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Sua respiração está acelerada, mas constante. Seus olhos fechados contém as lágrimas que às vezes escorrem, e a boca, permanentemente entreaberta, porque o nariz está entupido.

Está deitada sobre um lençol desalinhado, com as pernas enroladas em duas cobertas desnecessárias para o clima e a cabeça apoiada em um travesseiro cujos dois lados já estão quentes, tão quentes quanto seu corpo por dentro, mas quem lhe dera fosse por fora.

Queimar até as cinzas não lhe parece ruim, só é uma pena que seja doloroso.

Mas ela não precisará lidar com essa frustração por muito tempo, pois essa sensação, se tudo der certo, será a última vez que a sente. A última tarde em que se deita na cama e espera que a ansiedade passe sozinha enquanto oscila entre o tédio e a sobrecarga. A última vez que sente os olhos arderem e cobre a boca com o travesseiro para não soltar toda a decepção que sente por simplesmente ser quem é, até que durma por horas e horas.

Nesta tarde, quando se deitou em sua cama, todos os minutos a partir dali já tinham seus planos. Ela não fará as mesmas coisas do início, mas almeja a parte final. 

Deitada e coberta, espera que o ácido hipocloroso se transforme em gás cloro pelo tempo em contado com o oxigênio, e por sarcasmo e também pelos sintomas que já observa, se parabeniza por seu primeiro experimento químico que está dando certo.

Mas no final de tudo, apenas espera que a asfixia não seja tão cruel, afinal, é disso que ela foge. Das dores que acha injustas e de todas as coisas que podem lhe machucar. 

De todas as coisas que já a machucaram.

Mesmo assim, a dor física sempre foi inevitável, portanto, ela passou a ser mais convencional. E a sua cabeça, que doía por reagir aos mil pensamentos por segundo, deixou de se importar com os minutos que eram sessenta vezes isso; agora, talvez as horas também, afinal ela não sabe a quanto tempo está ali.

E nem importa.

Ela concluiu que nada mais a surpreende simplesmente porque tudo a afeta, e que dessa forma pode ser um minuto ou um dia, é a mesma coisa de sempre no final das contas. Só muda o fato de que é a sua última lembrança, e que ela está consciente disso.

Consciente, sim. Ela ainda sabe em que ambiente está, como é sua aparência e as pessoas que conhece, acima de tudo sabe o que está fazendo e infelizmente sente, porque é impossível não notar.

A tosse cada vez mais constante, a falta de sensibilidade nos pés e nas mãos, que aos poucos parecem ficar mais azulados. O som rouco da sua respiração e os pensamentos desacelerados, quase em transe. Além disso, tem a sensação de ardência no nariz e o sentimento de culpa no peito.

Culpa, exatamente culpa. O sentimento que ela temia vivenciar nesse momento, porque como esperado, a faz duvidar.

É pela dúvida que ela abre os olhos com a irreal esperança de ser um cenário diferente, e é por delírio ou o mais puro desejo que ela realmente não vê o que era para estar em sua frente.

Ela visualiza, pela milésima vez, o dia mais feliz da sua infância, o melhor do início da sua adolescência e assim por diante, até que todos os dias da sua vida tenham passado em sua frente como se fossem um filme acelerado.

E então ela fecha os olhos novamente, porque de repente todas as suas lembranças a fizeram esperar por outra coisa; esperar por vida normal como a que um dia imaginou ter e pelo dia específico em que tudo aquilo ficaria para trás, como mera memória, assim como todo o resto.

Ela não sabe em que exato ponto passou a olhar para si mesma como lembrança, mas subitamente tudo voltou a importar, inclusive sua vida, mesmo que ela ainda seja menos.

E então ela se arrepende, levanta depressa e quase caindo e abre a porta do cômodo que lhe serve como gatilho, mas ela ignora, respirando uma única vez o ar puro que está ali, pois o gás se espalha rapidamente. Tempo que é suficiente para que ela pense, afinal, tudo parece estar devagar demais além de errado demais.

Ela observa a situação, pela primeira vez não sentindo nada. Como um vazio absoluto que antes desejava, agora, vivenciando ainda em vida, se arrepende novamente; dessa vez, por ter saído.

Brincar com sua vida não era opção, mas ter liberdade de escolha com algo importante gera insignificância, e agora é tomada de satisfação enquanto também experimenta o sentimento de nostalgia pela experiência anterior. 

Essa mistura a paralisa.

Extasiada e traumatizada ela percebe o porquê de ninguém parar após a primeira tentativa e que então, agora sim está morrendo.

Sorri, vencida por mais uma decepção.

Ainda cambaleando ela se levanta e volta para o quarto. Fecha a porta atrás de si, mas dessa vez abre a janela para que o ar intoxicado se disperse e começa a arrumar a bagunça que antes não lhe faria diferença. 

Agora, tudo que tem em mente é organização, sendo uma prioridade que ninguém descubra e que a noite corra como sempre foi. Ela precisa ficar firme, mesmo que só mais um pouco, pois a consulta com o psicólogo é só amanhã, e até lá ela precisa fingir que nada disso aconteceu, por um minuto de cada vez.

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⏰ Última atualização: Jan 26, 2022 ⏰

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