Prólogo

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Há algo extremamente cativante nos movimentos imperfeitos que se desenrolam no meio da taverna. Eu acho que "mágico" é a palavra certa. Mesmo que eu tente, não consigo parar de prestar atenção nos passos simples e variados que cada pessoa no círculo faz. Eles não estão dançando com uma coreografia, nem sequer parece a mesma dança se prestar atenção de um a um, mas eles continuam balançando juntos em uma certa harmonia. Parece... Divertido, pra falar a verdade. Todos estão sorrindo.
Lembrando-me do meu motivo de estar aqui hoje, tento ao máximo voltar meu foco ao que vim fazer. É nossa única chance, não estrague tudo Lorelay, é o que fico repetindo até que se torne como um lema gravado na minha mente. Eu não posso pisar na bola, mesmo que meus pés implorem para que me junte a massa dançante de pessoas a minha frente. Hoje não, Lore. Mas... Ainda falta tempo até a hora marcada.
Minha espada pesa na minha cintura, como um lembrete. Só uma dança, quem sabe? As ruas seguem cheia de comemorações, assim como dentro da taverna, não seria de nenhum mal se eu me juntasse a uma delas, certo? Não poderiam me condenar por isso. Deuses, eu sou uma péssima espiã. Não é a toa que este não é o papel que geralmente assumo. Maldita seja a falta de pessoas interessadas em uma revolução.
– Você dança? – Pergunta uma garota com longas tranças ruivas, puxando-me para longe dos meus pensamentos.
Ela é muito bonita, não posso deixar de reparar. É aquele tipo de beleza que se destaca em locais comuns, a pele clara de alguém que não trabalha ao sol, diferente da maioria dos habitantes daqui. Olhando de longe, o contraste entre nós duas é gigante.
Sua mão se estende, em um pedido silencioso que eu quero muito aceitar. Eu posso ficar observando enquanto danço com ela, certo? Eu definitivamente não vou ficar distraída com esses olhos... e caramba, que olhos! Quanto mais eu olho para eles, mais aqueles dois topázios me chamam, como se perguntassem se eu ousaria me afogar neles. Eu não consigo esconder um sorriso, e seus olhos reluzem quando o percebe. Ela sabe que me ganhou.
Com uma leve reverência e o sorriso mais largo, alcanço sua mão e a guio para as ruas, onde a música se estende por todos os lugares. Bardos tocam a cada esquina e a aglomeração acompanha com palmas e passos de dança enfeitados com alegria. As ruas, iluminadas com diversos lampiões e postes que seguem até uma espécie de píer na beira do rio estão cobertas por flores e cheiram a doce e liberdade. Agora, isso sim é mágico.
Volto meu olhar a garota, que parece intrigada com toda a comoção. É como se estivesse apreciando tudo, mas não fizesse realmente parte daquilo. Interessante. Não posso parar de imaginar de onde ela vem. Suas mãos são macias, e, mesmo que consiga perceber os resquícios de alguns calos, não parece que seja de trabalho braçal – algo que fica óbvio com sua postura. Como é que...
Sinto um aperto na minha mão e percebo um sorrisinho nascendo naqueles lábios. Coro um pouco, mas não fica muito perceptível graças a minha pele escura. Ela me pegou encarando. Luto para não desviar o olhar e continuo estudando-a. Seus cabelos ficaram de um vermelho quase vivo com o pôr do sol, e tudo que me vem a mente é fogo. Quando ela finalmente trava seu olhar com o meu, só consigo imaginar que toda essa cena é digna de uma pintura. Em momentos como esse, eu realmente consigo apreciar nosso reino. Uma pena que não seja sempre assim.
Coloco o pensamento de lado, balançando a cabeça. Agora não é hora de pensar nisso. Daqui a pouco, ao escurecer, eu posso deixar-me levar pelo ódio que tenho aos governantes, mas não quero que isso estrague esse momento, então, puxo a garota para perto de mim, levantando uma sobrancelha ao apontar com a cabeça para o píer onde estão dançando.
– Pensei que nunca ia chamar – diz ela com um tom melódico, rindo.
E assim, a dança começa. Rodopiamos uma com a outra com grandes sorrisos estampados no rosto e, consequentemente, algumas risadas quando trocamos de lado, ainda girando e girando. Agora eu entendo a energia alegre do lugar. É extremamente satisfatório só dançar e deixar que tudo seja levado com os passos. Sinto todo peso que acomodou-se quase permanentemente nas minhas costas ir se esvaindo aos poucos. Cara, eu realmente adoro dançar. Fazia tanto tempo que não o fazia só por diversão que tinha me esquecido de quão bom é. Assumo que a companhia também ajuda.
Srta. Cabelos vermelhos não desprende seu olhar de mim em nenhum momento. Mesmo quando rodopiamos, ainda estamos olhando uma a outra com o canto do olho, é... Magnético. Eu provavelmente deveria perguntar seu nome, mas mais tarde, talvez. Nesse instante, tenho medo de quebrar a cena se fizer algo errado. Eu quero aproveitar enquanto posso, então, só sigo no mesmo ritmo que ela até que o sol desça completamente e só reste a iluminação da rua. Chegou a hora.
Aproximo-me da minha companheira, fazendo uma leve reverência e murmurando uma desculpa. Ela não parece ter escutado, mas parece ter entendido a despedida, diminuindo o passo. Evito seu olhar, com medo de dar para trás e apenas continuar dançando e, com isso, olho para um homem me encarando no canto. Reconheço a presença dele pela primeira vez desde que conversamos mais cedo e apenas confirmo com a cabeça. Ele sabe o que fazer.
Minha mão desce para espada que estava repousando na minha cintura. Não é tão estranho as pessoas andarem armadas, mas geralmente, ninguém traz armas para eventos assim. A questão é que as pessoas não sabem o quão diferente este evento é dos outros. Não teria como saber.
Com um último rodopio, desembainho a espada, apontando-a para cima enquanto subo ao pequeno palco em que os bardos tocavam. A música para e as pessoas também. O mundo todo para enquanto a tensão envolve todos como um manto em forma de silêncio. Todos os bardos pararam, em todas as tavernas, assim como o planejado. A família real desce da carruagem, chegando na comemoração no tempo perfeito. As princesas mais novas sempre com o manto que não permite que reconheçamos seus rostos, o rei, a rainha e a herdeira encarando-me com uma cara de tédio. Estranho. Não a falta de reação, mas a falta alguém, são quatro as irmãs mais novas, não três.
– Creio não ter me apresentado devidamente, – Digo alto o suficiente para que todos presentes me escutem. Não é hora de focar em coisas triviais. – Muito prazer, meus queridos amigos e majestades, – Forço uma reverência e um sorriso claramente debochado. – Meu nome é Lorelay, mas este não é o ponto. Hoje, meu nome é Chartae, não estou aqui como uma pessoa, mas como todos que aqui habitam. Já deu de sofrer pelo reinado de alguém que não se importa com seu reino. Você pode ser o rei, – Encaro vossa majestade e encontro raiva em seus olhos, interessante. – mas de que vale um rei sem ninguém para sobre o qual reinar? Seu povo está cansado de trabalhar até a quase morte, está cansado da doença e está cansado da miséria que segue em seu reinado enquanto vocês, nossos intitulados governantes e protetores vivem do bom e do melhor. Nós não aguentamos mais. Nós não deveríamos ter que aguentar isso por vocês enquanto não ganhamos nada em troca.
Dessa vez, desvio meu olhar do pedaço de merda que se diz rei. Não é com ele que estou falando agora, não é por ele que estou fazendo isso, então, olho para a massa de pessoas na minha frente. Encontro o olhar de algum deles e vejo determinação crescendo ali. Está funcionando. A insatisfação deles finalmente está dando as caras.
Percebo a aproximação de guardas e apenas guardo minha espada. Eu já tenho a atenção, vou sumir antes que eles possam fazer algo.
– Hoje, parecem apenas ameaças vazias, um peão que saiu das rédeas e precisa ser controlado, mas vocês estão se esquecendo da melhor parte. Quando o peão chega ao final do tabuleiro, ele pode escolher que peça quer se tornar, e eu? Eu escolho a rainha. Não aquela que fica ao lado do rei e se submete a suas vontades para protegê-lo, mas sim a peça mais perigosa do tabuleiro. Um peão saiu de formação hoje, e, por mais que pareça insignificante agora, lembre-se que já é um buraco em seus escudos. E os buracos tendem a aumentar. Paciência, altezas, a vez de vocês caírem está por vir. Que os jogos comecem!
Assim que eu termino, uma nuvem de gás começa a subir e a confusão se instala. Deuses, obrigada por colocarem a Alicia nos braços da revolução. Sem ela e suas engenhocas provavelmente já teríamos sido presos.
Começo a correr, mas não sem antes encontrar o olhar da garota das tranças vermelhas. Ela parece em choque e talvez um pouco assustada, nem consegue manter contato visual comigo. Uma pena ter acabado assim, eu realmente gostei dela.
– Bom trabalho, Lore, – cumprimenta Killian ao acompanhar-me na fuga e colocando um sorriso brincalhão – Você deveria se tornar a diplomata oficial da revolução.
– Vamos sair logo daqui, idiota.

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