Percepção de fim de ano

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Há muito tempo já não passava o réveillon na casa dos meus parentes, moro em outra cidade não muito longe, mas é melhor que nossa cidade natal, bom, esse ano a festa é a na casa da minha avó, é aconchegante, mas não é a minha casa, já estou arrumada e a caminho da festa, a estrada está calma e a viagem é curta.

Essas reuniões de família - Mas como pude esquecer? - Sempre me tiram a paz, todos olham para mim com estranheza, eu sei, eu sei que meu jeito de se vestir não é nada convencional para essa sociedade que precisa reafirmar tudo no meio de uma grande guerra, minha família não tem motivos para me acharem estranha pois já me conhecem a mais de 25 anos e sempre fui assim, hoje especialmente como todos os dias estou vestida com um vestido preto e longo - Não é assim que eles falam, um pretinho básico? - E uma blusa leve para a brisa da praia não me resfriar, acho melhor que eu não surpreenda ninguém.

Bato na porta e quem me atende é minha tia Tereza, muito querida me convidou para entrar, alguns passos à frente senti nas minhas costas o olhar de julgamento de sempre, - Pelo menos eu nunca me surpreendo - caminhei para a cozinha onde todos se encontravam e os cumprimentei com educação, mas ninguém ouviu, então me dirigi a um canto perto da janela onde poderia me distrair com as luzes da cidade.

Mas logo interromperam minha distração, minha outra tia, a tia Tamires, falou gritando que não tinha percebido minha chegada e fez com que os outros também percebessem, sorri educadamente como se diz o senso comum e acenei para todos, minha avó veio em minha direção com uma bandeja cheia de salgadinhos, e como não sou ferro peguei uma boa quantia para passar a noite afastada da mesa, e quando achei que estaria com alguma paz escuto alguém bater na porta, todos ficaram contentes pois pesaram que era a encomenda atrasada de salgados, mas meu tio largou a Coca-Cola com pressa na mesa e foi correndo ultrapassando suas irmãs que já estavam com o dinheiro do pagamento na mão, e aquilo foi estranho meu tio só saia da mesa para ver os fogos de artificio.

Pois então ele abriu a porta e era um homem segurando um pudim em forma de mercado, com um terno nada discreto e sorrindo muito alegre, cumprimentou meu tio que estava com uma cara sem graça, e explicou que era um colega de trabalho e o convidou porque não tinha onde passar o final de ano - Será que ele pagou o aluguel? Questionei rindo internamente – e logo a expressão confusa de todos transformou em uma confusão menos confusa agora, mas como eu não sou a única a ter educação eles também tinham, o mínimo, mas tinham, convidaram para entrar e servir o pudim pronto na mesa.

Esse cara logo virou o centro das atenções na roda de conversa, ele falava de tudo um pouco, tinha piadas únicas e já tinha morado em várias cidades, ele mostrou ser uma pessoa bem interessante, mas o seu jeito é extremamente irritante, primeiro ele sempre faz um barulho estranho depois de rir, segundo ele senta com as pernas tão abertas que se percebe os desconforto dos que estão do lado, terceiro sempre interrompia os outros para falar, falar e falar, quarto ele não parava de comer e assim falava de boca cheia – A quinta seria seu terno super laranja mas já citei antes deveria ser a primeira então.

Mas minha família não é tão diferente e também o interrompia - É a lei da sobrevivência da palavra, talvez seja.- e ao redor da mesa se formou uma tempestade de palavras que me atormenta profundamente, então fui para a varanda com meus salgadinhos, enquanto comia observei a tranquilidade da rua, provavelmente a casa da minha avó é a mais animada aqui, deixei os pensamentos irem e virem por um bom tempinho e os salgados acabam e agora estou com muita sede, voltei para a cozinha procurando alguma bebida que não tenha álcool, minha sorte é que tinha uma jarra com suco de laranja que só as crianças estavam aproveitando e não me surpreendi com a animação da conversa que ainda estava.

Peguei um copo e coloquei o suco rapidamente para voltar para a varanda correndo, mas todos se levantaram com o grito da minha vó olhando a hora, me puxaram como a onda do mar em direção a sala, já estava na hora da contagem para iniciar o novo ano, minha avó aumentou o volume do rádio no máximo e eu nem tinha visto o tempo passar, todos estavam bem concentrados na narração sobre os fogos de artificio das outras cidades e começou a contagem, quando vi pelo quanto do olho o colega de trabalho do meu tio sair de fininho em direção a cozinha que não fica tão longe da sala.

Dez, fiquei observando e me posicionei em um canto onde tinha uma boa visão, nove, arqueie minhas sobrancelhas ainda segurando o suco de laranja no copo de requeijão, oito, olhei para ele e o vi pegando todos os poucos salgados que restaram, sete, e ainda tentava dar grandes colheradas na comida que estava dentro das panelas, seis, como se não bastasse ele bebe no bico de todos os vinhos, cinco, pega uma garrafa de cerveja e esconde por dentro do blazer, quatro, ele percebe que estou olhando e ajeita os bolsos cheios de salgadinhos e limpou a boca com a manga do terno, três, dei um gole no suco e desviei o olhar, dois, enquanto ele caminha de volta para a sala olhava fixamente para mim com os olhos esbugalhados, um, se mistura com os outros, zero, aumenta o tom de voz para comemorar, um, ninguém percebeu.

Então todos reunidos na sala comemoram o prospero ano novo e se abraçam, mas o cara estava com uma expressão de - Não sei dizer - preocupação ou era um certo pavor quando olhava para mim, mas ninguém percebeu, nunca percebem, rapidamente ele se despedi de todos com um enorme sorriso otimista – Um ótimo ator e também recordista de roubar comida – e todo mundo também sorrindo – Muitos já estavam para lá de Bagdá – se despediram dele até elogiaram o pudim de mercado que fingiram ser caseiro e o levaram até a porta.

Dou um suspiro de alivio já que poderei ter mais paz - Será? - mas é claro que não, ainda não estou na minha casa e todos os meus parentes estão reunidos e com os fatos ocultos só pode dar briga, meu tio foi o primeiro a voltar para a cozinha e ficou muito chateado, percebeu que seus queridos salgados não estavam lá, minha avó foi depois e viu que as panelas estavam todas reviradas e então a tia Tereza já bêbada chega e coloca a culpa no seu irmão que foi o primeiro a chegar na cena do crime, também lembra da encomenda que não tinha chego e começa a chorar.

Raramente acontece uma coisa dessas nas festas de família - Creio eu - mas quando acontece sempre é memorável, além de lembrar da brisa do litoral, me despedi deles e me dirigi ao meu carro para me recarregar e fui para minha querida casa.

Percepção de fim de anoOnde histórias criam vida. Descubra agora