Capítulo 1

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Seher sentia o aperto no pulso enquanto era levada até o jardim, as pernas vacilando ao longo do caminho, sem opor muita resistência. Durante as últimas semanas, muitas vezes havia sido atormentada pelo peso das palavras ditas a Yaman e pelo impacto de cada atitude que tivera que tomar para convencê-lo de que não o amava, embora o motivo fosse justamente o oposto. Nesse período, não foram poucas as vezes em que sonhara com o reencontro ou que ansiara pelo momento em que poderia estar outra vez ao lado do marido, apreciando seu cheiro, deslizando a mão em sua pele e mergulhando em seus olhos, outra vez desfrutando do amor que compartilhavam e que reverberava em cada célula com a sensação dos corpos próximos.

No entanto, as circunstâncias de seu retorno à vida dele foram completamente diferentes disso, o que não chegava a ser de todo surpreendente. Quando precisou optar entre permanecer ao lado de seu amor ou batalhar pela chance de cura dele, não encontrou um caminho fácil. Ao tomar a decisão, sabia dos riscos que corria, mas não podia evitá-los. Era o preço que teria que pagar. Ainda assim, uma coisa era a possibilidade de não ser perdoada, outra bem diferente era ver a rejeição, o desamparo e a fúria estampados nos olhos dele, sabendo exatamente de onde vinham esses sentimentos e tendo experimentado, em outras circunstâncias, o amor que antes ocupava o olhar dele.

Poucos antes ela havia sido levada por Yaman para a sala da mansão, logo após tê-lo visto empunhar uma arma outra vez. Depois, diante da víbora que os destruíra fora destituída de seu posto de senhora na vida dele e declarada prisioneira naquela que já havia sido sua casa, seu lar, mas que também já testemunhara inúmeras outras batalhas entre os dois. Agora provavelmente estava numa situação muito pior do que aquela em que chegara logo após a morte de Kevser, pois mesmo que hoje Yaman evidentemente ainda a amasse, todo o corpo dele nesse momento estava retesado em fúria e em dor pelo abandono e pela traição que acreditava que ela tivesse cometido.

O cheiro dele ainda era o mesmo que havia guardado em suas lembranças e ainda havia calor em suas mãos, mas no momento, em vez de conforto, o contato ocultava uma ameaça velada de dizimação dos dois. Isso revelava a extensão das consequências de mais um dos incontáveis episódios de destruição mútua vivenciados por eles e indicava que viviam agora em um abismo muito mais perigoso do que todos os outros pelos quais haviam passado.

Entendia perfeitamente pelo que Yaman estava passando nesse momento, pois ela quase fora destruída pela mesma sensação de impotência, fúria e desespero enquanto acreditava que ele havia assassinado Kevser. Sabia como era se sentir traída não apenas pela pessoa a quem entregara o coração sem reservas, mas também pelo próprio corpo que, ingrato, parecia se recusar a esquecer do outro, mesmo que isso significasse destruir a si mesmo no processo.

Compreendia como era tentar arrancar do peito um sentimento cuja existência era, por si só, a evidência da própria fraqueza, a lembrança constante do erro que pensava ter sido a entrega ao outro. Conhecia esse tipo de luta contra a própria alma que, rebelando-se contra qualquer motivo razoável para a distância entre ambos, clamava pela presença do outro que, apesar de tudo, ainda era amado.

Sentindo o impacto do próprio corpo contra o chão duro, só então Seher olhou para o amontoado de objetos no gramado. Reconheceu símbolos e memórias espalhadas sobre o verde, a perfeita imagem da dualidade que viviam a maior parte do tempo desde que se conheceram, a luta constante entre a luz e a escuridão. Fotografias, cartas e uma imensidão de outros itens que mal podia identificar por causa das lágrimas que turvavam sua visão. Agora, o mesmo jardim que testemunhara os encontros em família, as palavras e as promessas apaixonadas era palco de mais uma destruição dentre as tantas às quais foram submetidos ao longo do período em que compartilhavam a vida.

Olhou para Yaman, que permanecia de pé, mas agora segurando um isqueiro e então percebeu a intenção dele. Mesmo que ainda não pudesse verbalizar as razões para fazer o que fizera semanas antes, Seher desejou que ele pudesse vislumbrar indícios da verdade em seus olhos ou que algo em seu rosto o demovesse de seu propósito. Havia se esforçado para que ele acreditasse que fora traído, mas ao se dar conta da iminente destruição compreendeu o quanto as coisas haviam fugido ao seu controle. E se, apesar do amor, não houvesse reparação?

Desesperada, acompanhou o momento em que ele acendeu o isqueiro e levou a chama até a ponta da carta que havia escrito a ele em outra ocasião, a carta à qual ele se agarrara em esperança quando ela havia fugido após o tiro. Em seguida, observou o fogo passar da carta para o restante dos itens, se espalhando com voracidade pela pilha de memórias e deixando um rastro de fumaça que se elevava acima deles, numa perfeita metáfora da sofreguidão com que o destino os destruía. Ouvia ao longe a voz trovejante de Yaman despejando sua dor, mas não conseguia processar ao certo o conteúdo do que ele dizia.

Em completa agonia, observou ele virar as costas para ela e para a pilha incendiada e que já começava a transformar tudo em cinzas. Não, não... não podia permitir que tudo acabasse daquela maneira. Deveria haver um modo de resgatar o pouco que restava deles. Olhou para o amontoado no chão, as chamas devorando o que ainda restava e se aproximando de um dos poucos símbolos que permanecia relativamente intacto: o infinito esculpido em madeira que Yaman havia dado a ela após ser ferido na prisão, antes do casamento e antes mesmo que cogitassem confessar o amor um pelo outro.

Sem pensar, levou uma das mãos ao objeto numa tentativa de resgatá-lo, não se importando com o fato de as chamas alcançarem sua pele, ameaçando queimá-la assim como fizeram com todo o resto. O mesmo fogo que uma vez fora reparação era, desta vez, a destruição. Com aquele gesto, Seher gravava no corpo e na alma mais um símbolo do amor que sentiam um pelo outro, mas desta vez um símbolo que contava uma história diferente. Contava de um amor que, apesar de inegavelmente grande, seria capaz de aniquilar a ambos e que os feria com a mesma intensidade que os curava, um sentimento avassalador que os tornava fortes, mas também os fragilizava.

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