Capítulo 2

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Yaman observou pela fresta da porta a mão dela sendo cuidadosamente enfaixada por Cenger e sentiu o costumeiro aperto no peito ao ouvi-la emitir um gemido de dor, os olhos verdes transbordando e o queixo pequeno tremendo, ela parecendo, mais do que nunca, frágil e pequena. Sua reação mais imediata foi, inconscientemente, se mover em direção a ela numa tentativa de tomá-la em seus braços e com beijos fazê-la esquecer a dor, mas conteve-se antes de agir. Agradeceu pelo fato de que nem ela nem Cenger haviam notado sua presença ali e voltou a mesma posição que antes. Com pesar, percebeu que mesmo nas atuais circunstâncias queimaria o mundo para protegê-la da dor infligida por qualquer outra pessoa, mas estranhamente não podia evitar que a própria fúria a ferisse, mesmo que de forma inconsciente. 

Por um breve instante, sentiu o próprio coração afundar ante essa constatação, mas logo em seguida apertou os punhos quando notou que na outra mão ela segurava com firmeza o que parecia ser um chamuscado infinito gravado em madeira, fazendo-o recordar de tudo. Que direito ela tinha, depois de tudo, de tocar naquilo? De se agarrar ao objeto, como se houvesse algum valor para ela?

Algumas horas haviam se passado desde que a arrastara até o jardim para que testemunhasse a destruição, ao menos materialmente, do que ainda restava deles. Agora, ali, parado, não evitou pensar que em outra situação romperia a distância e iria até ela, pegaria sua mão com delicadeza e tentaria suavizar a dor que atravessava sua face, como quase fizera instantes antes. Isso o fez se odiar ainda mais, pois não entendia como podia continuar amando essa mulher mesmo depois de tudo o que ela fizera a ele. Depois de tudo o que viveram, no fim das contas, ela não passava de uma criatura tão baixa quanto a mãe dele. 

Ainda estava completamente destroçado por tudo o que viveram nas últimas semanas. Por algum tempo havia se recusado a acreditar que sua doce margarida era uma mulher tão ardilosa, mas depois do descaso com que fora tratado, de todas as palavras ditas a ele e após enfim vê-la nos braços do padeiro, não pôde mais lutar contra os fatos. Como pudera se esquecer das próprias palavras acerca do veneno das mulheres e permitiu que uma tivesse tanto poder sobre ele? Agora ela parecia entranhada em cada célula de seu corpo e por mais que tentasse, não conseguia arrancar o rastro da passagem dela por sua vida.

O pior de tudo era lidar com aquela parte dele que ainda a amava, ainda a desejava e ansiava por sua doçura e por seu cuidado, que desejava aquelas mãos macias contra sua pele, as palavras doces murmuradas em seu ouvido. Queria poder arrancar de uma vez por todas Seher de sua vida, apagando completamente da memória o cheiro e os toques dela, e, junto, queria arrancar a própria parte de si que ainda estava presa a ela e que, insubordinada, recusava-se a deixar a traidora partir. 

Pouco antes, num ato irracional havia juntado todos os símbolos que marcavam a mentira que era o casamento deles e os incendiou sobre o gramado do jardim, tendo por testemunha o local que antes fora, inúmeras vezes, o refúgio deles. Com esse gesto, imaginara que tornaria mais fácil extinguir aquele pedaço dele que ainda se apegava ao desejo de que Seher fosse diferente dessa mulher que descobrira. 

Imaginou que conseguiria colocá-la na posição que achava que ela era merecedora: uma víbora, presa às consequências de suas próprias escolhas, pagando pelo erro que cometera. Se jamais se esquecesse disso, então não seria outra vez enganado pela aparência angelical que o fazia enxergar nela a luz que o havia arrancado da escuridão, porque agora sabia que essa Seher jamais existira. 

Mas depois de incendiar a pilha de memórias, percebeu que estava enganado sobre uma coisa: queimar aqueles itens não atenuaria o próprio conflito, nem a própria dor. Pelo contrário. Agora estava sufocando, o gosto amargo da própria derrota brincando em sua boca, zombando de sua debilidade, lembrando-o da inutilidade da tentativa de apagar a de sua vida a presença dela como sua esposa.

Tudo isso havia se evidenciado ainda mais quando percebeu, horas antes, que ela havia tentado resgatar algo da pilha incendiada. Viu o exato momento em que as mãos que antes foram beijadas por ele haviam sido feridas na tentativa de recuperar o infinito que uma vez tivera tanto significado para eles. Não entendia o que ela pretendia com isso, se enganá-lo uma vez mais, convencendo-o de que se arrependia, ou se havia mesmo alguma parte dela que ainda tinha apreço pelo objeto, por qualquer razão que fosse. 

Mas isso não importava, pois na ocasião, contra todos os seus instintos, virou as costas para o que quer que isso pudesse significar. Sabia que Seher podia ir muito longe quando queria convencê-lo de que era uma mulher honrada ou que o amava, a julgar pelo fato de que, pouco antes que tudo piorasse, ela mesma havia indicado diversas vezes que estava preparada para a tardia consumação do casamento. Mas agora entendia os motivos dela... 

Mais cedo, para evitar que perdesse o controle, Yaman se afastara do jardim, recusando-se a dar voz ao coração que batia pesaroso no peito, implorando a ele que desse meia volta, pegasse a esposa nos braços e apagasse com seu amor a expressão de dor no rosto dela, agora gravada em sua alma. Nesse exato momento duelava contra o próprio coração, que se contentaria com qualquer migalha vinda dela, mas estava firme na decisão de não permitir que algo assim voltasse a acontecer. Nunca mais se colocaria outra vez na posição de dependente dessa mulher. Por isso, se preparou para dar as costas e sair dali quando ouviu a voz dela embargada, quase num sussurro:

- Cenger abi, está tudo arruinado... ele nunca me perdoará.

- Seher hanim, acalme-se. Lembre-se de que essa tormenta está próxima do fim. Em breve, tudo se esclarecerá...

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