Janeiro.
— Essas são todas as caixas. — o entregador falou com convicção, mas mesmo assim parou novamente em frente a toda aquela bagunça de papelão e plástico bolha, conferiu com os olhos mais uma vez, voltou-se para minha direção e me entregou o recibo da mudança. — Está faltando alguma coisa?
Essa foi a minha chance de conferir tudo. Eram cinco caixas no total e, bem, estava tudo ali.
— Não, está tudo aqui, muito obrigada!
Minhas costas estavam ardendo como nunca arderam antes e eu estava completamente realizada. Pouca idade, muita responsabilidade nos ombros, eu nem sequer acreditava que um dia poderia chegar a conquistar algo muito maior que meu próprio celular, mas essa dor e o gelo esmagador no meu estômago me faziam perceber o contrário. Eu poderia realizar muitas coisas por conta própria. E talvez os vizinhos tenham se assustado com o sorriso que dei ou apenas estranharam o fato de eu não ser coreana. Feliz e isso é o suficiente por enquanto. Ben e Frank continuaram agitados dentro da gaiola, bem mais que eu fora dela, e por isso tive que subir rapidamente as escadas, puxei a chave do bolso e abri o quarto onde eu moraria pelos próximos anos.
Abri a janelinha e as duas iguanas saíram em disparada, as perninhas correndo e procurando algum lugar novo para explorar, adorável e ao mesmo tempo desesperador, pois eu sabia do que esses pequenos animais eram capazes. Era compreensível, primeira viagem e ainda por cima dentro de um avião, as longas horas de São Paulo até Seul foram muito exaustivas e para as iguanas eu mal podia imaginar o quão pior poderia ter sido. Desci os lances de escada e comecei a carregar as poucas caixas que eu havia trazido comigo. Tive um certo cuidado extra com as mais pesadas, afinal, elas guardavam os objetos mais importantes. Estava prestes a pegar a última quando um barulho de motor soou tão forte que meus ouvidos começaram a reclamar. Virei rapidamente para trás tentando identificar o que tinha causado tamanho barulho.
Uma moto e um cara. Ele tinha óculos escuros no rosto e falava coisas que eu mal podia processar. Ele deu um jeito de enfiá-la nos arbustos, talvez estivesse fugindo de alguém. De qualquer maneira, eu não fui muito além dessa teoria, sua presença era inquisitória demais para que qualquer pensamento coerente pudesse se formar com lógica na minha cabeça. Só consegui acordar quando ele me empurrou até meu apartamento, o único que tinha a porta meio aberta.
— Ei! Quem é você?!
Consegui dizer começando a me debater e ele pareceu ficar irritado, quase rosnou quando bateu a porta com força, movia as mãos, não com pressa e então notei o quão alto seu corpo era, ainda mais comparado com o meu. Ele poderia tão facilmente acabar comigo e esse pensamento me assustava muito.
Minhas mãos estavam tremendo, as mesmas que ainda seguravam aquela caixa pesada. O som dos pequenos objetos batendo fazia com que a atmosfera ficasse ainda mais tensa. Ele iria me roubar? Queria me matar? Conseguia sentir o sangue pulsando nos meus ouvidos e tudo piorou quando ele tentou se aproximar.
— Fique quieta, garota. — era inglês, ele disse, seu sotaque atrapalhou um pouco, mas consegui ouvir tudo. Mais dois passos para frente. Cara a cara. Olhando diretamente para mim. Seu cheiro forte me inebriava no mesmo tanto que assustava. Esse era o último cheiro que sentiria na vida? O cheiro de perfume masculino, desodorante e bala de menta.
— Não me mande calar a boca, esse apartamento é meu. — minha voz saiu mais tremida do que eu gostaria que ela tivesse soado. Mas eu não podia me culpar, estava com medo, tremendo da cabeça aos pés.
Ele nem sequer parecia preocupado por ter invadido minha casa, apenas estralou os dedos em um gesto irritado e tirou os óculos.
Caramba.
— Você não quer morrer, certo? — arregalei os olhos. Era isso, esse é meu destino? Morrer depois de só completar algumas horas na Coreia? O fiz franzir o cenho quando derrubei a caixa e comecei a procurar alguma coisa pontuda para me defender. Ben e Frank poderiam muito bem abocanhar alguma parte do corpo dele, mas ao contrário de todas as minhas esperanças, eles estavam debaixo da mesa, com os olhinhos analisando toda a situação.
— Não chegue perto de mim!
Ele riu e levantou uma das sobrancelhas, estava puramente debochando da minha cara. Não se atreveu a dar nenhum passo, apenas afastou um pouco a porta e olhou por entre a fresta. Ficou feliz, tão feliz que tirou o celular do bolso, usava uma jaqueta de couro e calça escura. Discou um número aleatório e simplesmente saiu, sem olhar para trás, sem nem sequer se desculpar por me ameaçar de morte.
Foi embora e marcou completamente meu primeiro dia nesse novo país.
[...]
Setembro.
Já era de manhã e eu estava quase dormindo afundada no meu próprio casaco, tão quentinho e mesmo com as pálpebras quase fechadas pude notar o ônibus vazio. Afinal, poucas pessoas se aventurariam tão cedo, principalmente em um domingo tão cinzento como esse. Senhor Momo, para a infelicidade de seus funcionários, era muito exigente e queria seu restaurante de Rámen aberto logo e bem, eu não tinha escolhas, precisava do dinheiro e ponto final.
Meus olhos permaneciam pesados, piscavam a cada dois segundos e eu tinha que realmente me esforçar para não pegar no sono. Embrulhei ainda mais os dedos no bolso quente do casaco, estava confortável e se eu pudesse, ficaria ali por mais tempo, sentindo, apenas apreciando a brisa fresca da janela. Entretanto, assim que captei a placa colorida, — Momo Rámen. — aceitei que aquele lapso inquisidor de memória fizesse com que minha consciência aceitasse a realidade, eu precisava levantar do banco e seguir em frente, faltava bastante dinheiro e o curso não seria pago sozinho.
Ajeitei minhas coisas na bolsa, guardando o celular e o fone de ouvido, ambos no bolso pequeno da frente. Levantei com pressa, mas antes agradeci o motorista e sua expressão de entendimento fez praticamente todo o meu dia valer a pena. Fazia pouco tempo que eu tinha me mudado para Seul e o sotaque brasileiro não contribuía em nada. Os primeiros dois meses haviam sido os piores, mas agora tudo parecia começar a se acertar, estou conseguindo me comunicar bem e já tinha um emprego bom.
— Está atrasada. — fui recepcionada por olhos pequenos e um grande bigode branco. Senhor Momo estava todo encolhido, provavelmente com frio, mas mesmo assim parecia disposto a ficar em pé, checando se todos os funcionários estavam chegando no horário certo.
— O senhor sabe que isso é uma mentira. — cheguei mais perto, devagar. Eu estava dez minutos adiantada e senhor Momo não disse nada, entretanto, mesmo que de relance, consegui captar um pequeno sorriso satisfeito.
— Estou de olho. — arregalou forte os seus bem puxados olhos. — Trabalhe muito!
— Sim senhor.
Hyungwon e Jihyo ainda não tinham chegado, então decidi começar sozinha. Ajeitei o avental e comecei a limpar as mesas, eram poucas, cinco espalhadas pelo pequeno salão e uma bancada de seis lugares. Depois de tudo limpo, comecei a preparar algumas massas e pré-fritar alguns bolinhos. Gostava de fazer um bom trabalho, senhor Momo foi muito generoso ao me aceitar aqui, uma estrangeira que mal falava coreano direito e não tinha a menor ideia de como se portar em um país tão conservador. E desde então, eu não ligava de me forçar um pouco mais que o necessário, ainda mais se fosse para o deixar orgulhoso.
Voltei para a entrada e quase caí para trás quando dei de cara com um homem. Ele estava deitado sobre o balcão, tinha olhos cansados, barba por fazer e olheiras tão profundas que eu quase pensei ser maquiagem. Parecia um sonâmbulo.
— Alguma coisa, me dê alguma para comer, por favor. — tinha uma voz doce e eu logo comecei a terminar de preparar os bolinhos, todos gostavam dos bolinhos daqui, então não seria problema prepará-los sem de fato ter recebido um pedido. Aquele homem parecia cansado demais para conseguir pensar no que comer.
Enchi um copo de água e levei tudo até o balcão. O cheiro da comida pareceu o despertar, ele começou a comer tudo tão rápido, definitivamente assustador, mas não disse nada, meu trabalho era servir e não opinar.
Passei de novo meus olhos por sua figura, dessa vez mais atentamente. Um crachá preso em seu peito, era de um hospital, só poderia ser um que tinha bem perto daqui. E, seu nome era Jongin. Kim Jongin.
Um nome bonito.
Mas não tive coragem e nem a oportunidade de elogiar. Assim que Jongin terminou de comer, sorriu agradecido e colocou algumas cédulas de dinheiro em cima do balcão, o suficiente para pagar a refeição. Acenei e ele atravessou as portas de vidro.
[...]
Um sorriso satisfeito preencheu meu rosto quando notei o horário no relógio, 20h00. Finalmente poderia voltar para casa e dormir. Estava exausta e não conseguia entender como Hyungwon e Jihyo conseguiam bolar planos para o restante da noite.
— Vamos, Laura! Vai ser divertido. — Jihyo começou e Hyungwon a ajudou com seus olhares pidões. Até seria divertido sair com os dois, eram engraçados e animados, mas eu realmente me sentia prestes a desmaiar.
— Desculpe, hoje não. Quem sabe amanhã? — tentei lançar o meu sorriso mais gentil, mas nenhum dos dois se sentiu satisfeito com isso. Pelo contrário, me lançaram um olhar tedioso.
— Você disse isso ontem, antes de ontem e todos os outros dias desde que começou a trabalhar aqui.
É, Jihyo tinha razão. Mas eu não podia fazer nada, esse trabalho me consumia muito. Os dois trabalhavam apenas meio período e eu o dia todo. As situações eram completamente diferentes. Não conseguia pensar em nada que fugisse de um bom banho e lençóis macios. E eu sabia que a ideia deles apontava para alguma boate cheia de bebida e música alta. De jeito nenhum, fora de cogitação.
— Amanhã vamos sair. É uma promessa. — avisei e eles assentiram, ainda sem muitas esperanças de que eu estivesse realmente falando sério.
No fundo, eu esperava que eles aceitassem apenas comer. Sem festas e nem loucuras adolescentes.
Terminei de recolher minhas coisas e me despedi dos dois. Uma rua gelada e escura me esperava. O caminho de casa era longo, nenhum ônibus passava por aqui nesse horário. Segurei a respiração, guardei bem o celular dentro da bolsa e comecei a andar.
O som dos meus passos soava pela calçada e a luz dos postes tornava o escuro menos assustador. Eu fazia esse mesmo caminho todos os dias, entretanto, ainda sim era arrepiante como se fosse a primeira vez. Algumas noites eu apenas fechava os olhos e corria. Um pouco idiota? Muito. Minhas pernas faziam isso automaticamente, era só o perigo chegar que eu começava a correr feito uma garotinha. Quase fiz isso essa noite, quase.
De longe avistei aquela mesma moto de meses atrás, do cara que invadiu meu apartamento. Era ele, estava do lado dela, prestes a subir com pressa, mas antes que fizesse isso eu acabei por soltar sem pensar.
— Você!
Ele olhou para mim quase em instantâneo. Merda. Eu o chamei em voz alta? Droga! Comecei a negar com a cabeça, mas ele subiu na moto e continuou se aproximando, cada vez mais rápido.
— Não chegue perto de mim!
Parecia uma cópia daquele dia. Uma cópia bem malfeita e mais assustadora.
Ele me encuralou em uma ruela, estávamos escondidos dos olhos de quem ousassem passear na rua esse horário, ou seja, o local perfeito para um assassinato. Agarrou meu braço com força e prensou minha boca com seus dedos compridos. Foi forte e meu maxilar tremeu de dor, sentia meus ossos martelando contra a pressão de sua mão. E para meu desespero ele não parecia querer sair de perto.
— Você não consegue calar mesmo essa boca.
Seu timbre suave e duro vez com que minhas pernas começassem a tremer.
Droga.
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Lámen Festival
FanfictionLaura não tem grandes sonhos e menos ainda esperanças de realizar grandiosidades, mas sua vida vira de ponta cabeça ao conhecer duas personalidades extravagantes e ao mesmo tempo tão diferentes. Kai e Chanyeol mudariam tudo o que ela conhecia.