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Desde que acordou na espaçonave, Ransom vinha pensando na espantosa aventura de ir a outro planeta e nas suas chances de voltar dessa viagem. O que não tinha cogitado era em estar no planeta. Era com uma espécie de estupefação que, a cada manhã, se descobria nem chegando a Malacandra, nem escapando do planeta, mas simplesmente vivendo ali: dormindo, acordando, comendo, nadando e até, com o passar dos dias, falando. O assombro atingiu-o com maior impacto quando, três semanas após sua chegada, flagrou-se de fato indo fazer uma caminhada. Algumas semanas depois, já possuía suas caminhadas e suas comidas preferidas: estava começando a desenvolver hábitos. Distinguia um hross macho de uma fêmea à primeira vista, e até mesmo diferenças individuais estavam ficando evidentes. Hyoi, o primeiro a encontrá-lo – a quilômetros dali, mais para o norte –, era uma pessoa muito diferente do venerável Hnohra, de focinho grisalho, que lhe dava aulas diárias da língua. E os filhotes da espécie também eram diferentes. Eram encantadores. Ao lidar com eles, era possível esquecer tudo a respeito da racionalidade dos hrossa. Jovens demais para perturbá-lo com o enigma frustrante da razão numa forma não humana, eles amenizavam sua solidão, como se tivesse tido permissão para trazer consigo da Terra alguns cachorros. Já os filhotes sentiam o maior interesse pelo duende sem pelo que aparecera entre eles. Com eles e, portanto, com a mãe deles por tabela, fazia enorme sucesso.

Da comunidade em geral, suas impressões iniciais estavam todas sendo corrigidas aos poucos. Seu primeiro diagnóstico referente à cultura dos hrossa era o que chamava de "alta idade da pedra". Os poucos instrumentos cortantes que possuíam eram feitos de pedra. Parecia não haver objetos de cerâmica, mas alguns recipientes desajeitados eram usados para a fervura; e a fervura era a única maneira que eles usavam para cozinhar. Seu recipiente comum para beber, prato e copo ao mesmo tempo, era a concha semelhante à da ostra na qual Ransom provara pela primeira vez da hospitalidade do hross. O único alimento animal era o contido nessa concha. Havia alimentos do reino vegetal em grande abundância e variedade; alguns deles, deliciosos. Até mesmo a erva de um branco rosado que cobria toda a handramit era comestível em caso de necessidade. Tanto que, se Ransom tivesse morrido de fome antes que Hyoi o encontrasse, teria morrido no meio da fartura. Entretanto, nenhum hross comia dessa erva (honodraskrud ), embora ela pudesse ser usada na falta de outro alimento melhor numa viagem, por exemplo. As habitações deles eram cabanas na forma de colmeias, feitas de folhas rígidas; e as aldeias – havia algumas nas cercanias – eram sempre construídas à margem de rios em busca de calor e bem rio acima, na direção das muralhas da handramit, onde a água era mais quente. Dormiam no chão.

Davam a impressão de não possuir nenhuma arte, salvo um tipo de poesia e música que era ensaiado quase todas as noites por um grupo ou trupe de quatro hrossa. Um recitava como se entoasse uma longa cantilena, enquanto os outros três, às vezes individualmente e às vezes em coro, interrompiam-no de quando em quando com alguma melodia. Ransom não conseguiu descobrir se essas interrupções eram simples interlúdios líricos ou um diálogo dramático propiciado pela narrativa do líder. Da música não conseguia entender nada. As vozes não eram desagradáveis, e a escala parecia adequada aos ouvidos humanos, mas o tempo não fazia sentido para a noção de ritmo de Ransom. As ocupações da tribo ou da família eram de início misteriosas. Sempre alguém desaparecia por alguns dias para depois reaparecer. Pescava-se pouco e viajava-se muito de barco, viagens cujo objetivo jamais descobrira. Um dia, então, viu uma espécie de caravana de hrossa partindo por terra, cada um com uma carga de hortaliças na cabeça. Aparentemente, havia em Malacandra algum tipo de comércio.

Na primeira semana, descobriu a agricultura deles. Cerca de um quilômetro e meio mais abaixo na handramit, chegava-se a uma região aberta, sem florestas, recoberta por muitos quilômetros com uma vegetação baixa e carnuda na qual predominavam o amarelo, o laranja e o azul. Mais adiante, havia plantas semelhantes a alfaces mais ou menos com a altura de uma bétula na Terra. Nos locais em que uma dessas plantas se debruçava sobre o calor da água, era possível entrar numa das folhas inferiores e experimentar o prazer de ficar deitado ali, como numa rede perfumada, num movimento delicado. Em outros lugares, não fazia calor suficiente para alguém poder ficar sentado muito tempo ao ar livre. A temperatura normal da handramit era a de uma manhã ensolarada de inverno na Terra. O trabalho nessas áreas produtoras de alimentos era da responsabilidade comum das aldeias circunvizinhas, e a divisão das tarefas tinha atingido um nível mais alto do que calculava. Cortar, secar, armazenar, transportar e alguma coisa semelhante a adubar eram todas atividades realizadas ali, e suspeitava que pelo menos alguns dos canais de água fossem artificiais.

Além do Planeta Silencioso (1938)Onde histórias criam vida. Descubra agora