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Nessa noite Ransom dormiu na casa de hóspedes, que era uma casa de verdade construída por pfifltriggi e ricamente decorada. O prazer dele de se encontrar, sob esse aspecto, em condições mais humanas era prejudicado pelo desconforto que, apesar do que lhe dizia a razão, não podia deixar de sentir na proximidade de tantas criaturas malacandrianas. Todas as três espécies estavam representadas. Elas não pareciam ter nenhum constrangimento umas para com as outras, embora houvesse algumas diferenças do tipo que ocorre num vagão de trem na Terra – com os sorns achando a casa quente demais e os pfifltriggi achando-a fria demais. Ele aprendeu mais sobre o humor malacandriano e sobre os ruídos que expressavam esse humor nessa única noite do que tinha aprendido durante toda a sua estada no planeta desconhecido. Na realidade, todas as conversas malacandrianas das quais tinha participado foram sérias. Parecia que o espírito cômico brotava principalmente do encontro das diferentes espécies de hnau. As piadas de todas as três eram igualmente incompreensíveis para Ransom. Ele achou que conseguisse perceber as diferenças no tipo do humor – por exemplo, os sorns raramente iam além da ironia, enquanto os hrossa eram extravagantes e fantásticos, e os pfifltriggi eram cortantes e se superavam nas palavras ofensivas –, mas, mesmo quando entendia todas as palavras, não conseguia captar o sentido da piada. Ransom foi dormir cedo.

No dia seguinte, foi bem cedo, na hora em que os homens na Terra saem para ordenhar as vacas, que Ransom foi despertado. De início, não soube o que o acordara. O aposento em que estava deitado se encontrava em silêncio, vazio e quase escuro. Ele ia se preparando para voltar a dormir quando uma voz aguda ao seu lado disse "Oyarsa manda chamá-lo". Ele se sentou, olhando espantado ao redor. Não havia ninguém ali, e a voz repetiu "Oyarsa manda chamá-lo". Agora a confusão do sono estava se dissipando na cabeça dele, e ele reconheceu que havia um eldil no quarto. Não sentiu nenhum medo consciente, mas, enquanto se levantava obediente e vestia as roupas que tinha deixado preparadas, descobriu que seu coração batia bastante rápido. Pensava menos na criatura invisível no quarto do que na entrevista que tinha pela frente. Seus antigos terrores de deparar com algum monstro ou ídolo já o tinham abandonado totalmente. Seu nervosismo era como o que se lembrava de ter sentido na manhã de uma prova quando estava na faculdade. Mais do que qualquer coisa no mundo, sentiu vontade de tomar uma boa xícara de chá.

A casa de hóspedes estava vazia. Ele saiu. A fumaça azulada subia do lago, e o céu estava claro por trás da muralha pontiaguda a leste do canyon. Faltavam alguns minutos para o nascer do sol. O ar ainda estava muito frio; a relva, ensopada de orvalho; e havia alguma coisa enigmática em toda aquela cena que ele logo identificou com o silêncio. As vozes de eldil no ar tinham cessado, da mesma forma que a trama inconstante de pequenas luzes e sombras. Sem que lhe dessem ordens, ele soube que deveria subir até o alto da ilha e ao arvoredo. À medida que se aproximava, Ransom viu, com certo desânimo, que a avenida de monólitos estava repleta de criaturas malacandrianas, todas em silêncio. Formavam duas linhas, uma de cada lado, e todos estavam agachados ou sentados nos diversos estilos adequados à anatomia de cada um. Ele avançou devagar e hesitante, sem ousar parar, exposto às duas fileiras de olhos não humanos, que não piscavam. Quando chegou ao topo, ao meio da avenida, onde se erguiam as pedras maiores, parou. Posteriormente, jamais conseguiu se lembrar se uma voz de eldil lhe dera essa ordem ou se foi por sua própria intuição. Não se sentou, pois a terra estava fria e úmida, e não sabia ao certo se seria uma atitude aceitável. Ficou simplesmente em pé – imóvel como um homem em posição de sentido. Todas as criaturas olhavam para ele, e não havia ruído em parte nenhuma.

Aos poucos, percebeu que o lugar estava cheio de eldila. As luzes, ou sugestões de luz, que no dia anterior se encontravam espalhadas pela ilha inteira, agora se congregavam nesse único lugar e estavam todas imóveis ou com movimentos levíssimos. A essa altura, o sol já tinha nascido; e ainda assim ninguém falava. Quando ergueu os olhos para ver os primeiros raios fracos do sol sobre os monólitos, Ransom tomou consciência de que o ar acima dele estava repleto de uma complexidade de luz muito maior do que poderia ser explicada pelo sol nascente, uma luz de um tipo diferente, luz de eldila. O céu, não menos que a terra, estava cheio deles. Os malacandrianos visíveis eram não mais do que uma parte insignificante do silencioso consistório que o cercava. Quando chegasse a hora, talvez defendesse sua causa diante de milhares ou de milhões: fileiras atrás de fileiras ao seu redor e fileiras atrás de fileiras acima da sua cabeça, as criaturas que ainda não tinham visto o ser humano, e que o ser humano não conseguia ver, aguardavam que seu julgamento começasse. Ele umedeceu os lábios, que estavam totalmente secos, e se perguntou se seria capaz de falar quando lhe fosse exigido que falasse. E, então, ocorreu-lhe que talvez isso – essa espera e essa exposição à observação – fosse o julgamento. Talvez naquele exato momento, ele estivesse inconscientemente dizendo-lhes tudo o que desejavam saber. Mas depois – muito tempo depois – houve um ruído de movimento. Todas as criaturas visíveis no arvoredo tinham se levantado e estavam em pé, mais caladas do que nunca, com a cabeça baixa. E Ransom viu (se fosse possível dizer que isso era ver) que Oyarsa estava vindo entre as longas fileiras de pedras esculpidas. Em parte soube pela expressão dos malacandrianos quando seu senhor passava por eles; em parte, viu – não poderia negar que tivesse visto – o próprio Oyarsa. Ransom jamais conseguiu descrever sua aparência. O mais simples sussurro de luz – não, menos que isso, a mais ínfima diminuição de sombra – vinha percorrendo a superfície irregular da relva; ou melhor dizendo, alguma diferença na aparência do chão, leve demais para ser descrita na linguagem dos cinco sentidos, vinha se movimentando lentamente na direção dele. Como um silêncio que se espalha por um salão cheio de gente, como um frescor infinitesimal num dia abafado, como uma lembrança passageira de algum som ou perfume há muito esquecido, como tudo o que é mais imóvel, menor e mais difícil de segurar na natureza, Oyarsa passou entre seus súditos, aproximou-se e veio parar, a nem dez metros de distância de Ransom, no centro de Meldilorn. Ransom sentiu um formigamento em todo o corpo e umas picadas nos dedos como se houvesse algum raio perto dele. E teve a impressão de que seu coração e seu corpo eram feitos de água.

Além do Planeta Silencioso (1938)Onde histórias criam vida. Descubra agora