Thomas segurava a esfera oval em suas mãos, observando o modo como as escamas se tornavam cintilantes sob o sol, refletindo cada mísero raio como se estivesse criando o próprio poente para a criaturinha que ali dentro habitava. O pescador sabia que não tinha mais qualquer saída, enquanto observava aquele ovo de sereia em seus dedos, a verdade veio à tona em sua mente, clara como os raios dourados que observava: sua vida iria mudar, e iria mudar muito.
— Onde você foi se meter...? — O homem questionou em um tom baixo, falando consigo mesmo.
Em partes, aquela pergunta não era só para ele. Era para... bom, era para ela. Yelena. A única sereia que teve o prazer de ver com seus próprios olhos. A primeira e única sereia — e pessoa, no geral — por quem se apaixonou. Enquanto encarava aquele ovo, Thomas tinha tanta certeza de que sua vida estava prestes a sofrer drásticas mudanças, como tinha certeza, também, de que algo de errado havia acontecido com sua amada.
Yelena jamais deixaria qualquer pessoa para trás, ainda mais sendo alguém indefeso, ainda mais sendo sua prole. A verdade era dura, mas estava bem diante dos olhos daquele homem apaixonado: sua doce Yelena havia ido embora e, como se isso já não fosse doloroso o bastante, ela deixou a cria do amor deles para trás, em um ovo frágil, solto sobre as tábuas do convés do velho barco pesqueiro da família dele. Em seu coração, ele sabia que havia algo de errado, que precisava haver um motivo maior.
— Ela não nos deixaria por um motivo banal, ovo — resmungou, mais para convencer a si do que qualquer outra coisa — não deixaria, não é? Digo... acho que você é tipo nosso bebê e... não acho que ela nos abandonaria assim, sem mais nem menos. Ela vai voltar.
Em pé naquele pequeno convés, o pescador observava as ondas ao longe enquanto segurava a esfera cintilante por entre seus dedos grossos e calejados, tentando acreditar em todas aquelas especulações muito provavelmente surreais que contava para si mesmo.
• 5 anos depois •
— Papai, papai! Papai, olhe! — A pequena Petra gritava ao descer as escadas de madeira do barco onde vivia com seu pai, continuando a gritaria enquanto tomava rumo ao chuveiro no recuado do canto; sim, só havia um único cômodo na parte inferior do barco que chamavam de lar. — Papai, veja só! Olhe o que achei!
A menina de cabelos castanho-escuros puxou sutilmente a cortina do chuveiro para o lado, enfiando metade de seu braço para dentro para exibir o colar de conchas e algas que havia encontrado.
— Mas o q... — Thomas baixou o olhar para o bracinho magrelo que invadia a cortina. Seus olhos se fixaram no colar e quase que de imediato ele pôde sentir as lágrimas se formarem, ameaçando cair. O colar estava coberto de musgo, como se há muito houvesse sido abandonado, e estava claro que havia sido arrebentado. Tantos anos depois... suas esperanças morreram naquele instante. Ele engoliu em seco, tentando disfarçar sua voz embargada. Era o colar de proteção de Yelena, mãe de Petra, seu grande amor. — É... é um lindo colar, querida.
— É mesmo, papai! — Disse a pequenina de origens mestiças, sendo metade sereia e metade humana, empolgada com a ideia de ter um apetrecho tão belo e artesanal quanto aquele. — Pode consertar para mim? — Questionou, agora afastando seu braço da cortina para voltar a encarar o colar que jazia em suas mãozinhas.
— Certo, meu amor. Eu conserto. Pode me deixar a sós um pouco? Preciso terminar meu banho. Logo subirei para almoçarmos. Me espere lá no convés. Pode abrir uma das latinhas de Fanta de Morango que trouxe para você de minha última ida à China Town — disse o pai, ainda tentando disfarçar sua vontade de chorar.
Petra, em toda a sua inocência, apenas gritou um "sim" cheio de empolgação, logo se direcionando à parte superior do navio com seu achado do mergulho do dia e a latinha de refrigerante de morango.
×
Enquanto aguardava o pai, a menina observava as crianças na ilha próxima de onde viviam... elas corriam, brincavam de bola, de boneca, de surfar... mas Petra sabia que não podia interagir com eles. Ela era diferente. Só não sabia bem o motivo. Certo, a cauda grande e brilhante que aparecia sempre que entrava em contato com a água salgada parecia um bom motivo, mas, ainda assim... ela só queria ser normal e poder viver com as outras pessoas.
A morena estava tão compenetrada em suas reflexões que nem viu o pai se aproximando. Quando ele lhe tocou as costas, sentando-se no chão ao seu lado logo depois com uma travessa de lasanha de queijo e talheres, Petra tomou um susto, quase se engasgando com o refrigerante. Acabou rindo.
— Quase me mata de susto, papai! — Exclamou por entre as risadas infantis.
— Sonhando acordada de novo? Você sabe... você não pertence a esse mundo. Essas crianças... — ele dizia, quando Petra o interrompeu.
— Eu sei. "Essas crianças não são como você." — falou, imitando o tom de voz do pai e pouco depois deixando escapar um suspiro. — Eu só queria pertencer a um grupo de pessoas. Ter amigos.
— Você pertence à mim e à sua mãe, meu amor — Thomas disse, dando um beijo na bochecha da pequena — e eu sou seu amigo. Sua mãe também é sua amiga, mesmo não estando aqui.
— Nem ela quer estar comigo — resmungou, sentindo os olhinhos cor de mel marejarem. Era difícil para ela pensar na mãe que nunca nem chegou a conhecer.
— Ela gostaria, Petra. Não diga isso. — O pai a repreendeu, magoado com a simples ideia de que Yelena poderia ter escolhido não estar com eles.
— Então por que ela não está aqui? Comigo? Com a gente? — Perguntou a menina, fungando.
— Eu não sei, meu amor... eu não sei — Thomas confessou, desviando o olhar.
A verdade é que ele se sentia tão solitário quanto Petra, destinado a esconder sua filha do mundo para protegê-la, sem ter qualquer apoio nessa jornada. Era doloroso. E era mais doloroso ainda enxergar Yelena todas as vezes quando olhava para a pequena, ainda mais depois de ver aquele maldito colar arrebentado. Ele lembrava de, dias antes de sumir e deixar o ovo de Petra, Yelena ter comentado sobre as sereias não estarem seguras nunca, no entanto, jamais pensou que aquilo podia ocasionar o desaparecimento de sua amada. Conforme os dias, meses e anos se passavam, um único medo se tornava maior em sua mente: viriam atrás de Petra? Sua filha estava segura? Thomas tinha medo de perder a filha do mesmo modo que perdeu sua amada.
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A Sereia
FantasíaPetra nasceu diferente. Ela sempre soube que não era como as outras pessoas... seu pai sempre fez questão de deixar isso bem claro, escondendo-a de todos e fazendo com que temesse cada um que não fosse ele mesmo. Ela não foi ensinada a lidar com o m...