DE CONFIDÊNCIAS
Entenda-se que não. Não era com prazer maior nem menor. Era imposição de sociedade, desde que Flora o pedira, não sei se discretamente. Que a isto ligasse tal ou qual desejo de saber algum segredo, não serei eu que o negue, nem tu, nem ele mesmo. Ao cabo de alguns instantes, Aires ia sentindo como esta pequena lhe acordava umas vozes mortas, falhadas ou não nascidas, vozes de pai.
Os gêmeos não lhe deram um dia a mesma sensação, senão porque eram filhos de Natividade. Aqui não era a mãe, era a mesma Flora, o seu gesto, a sua fala, e porventura a sua fatalidade.
— Mas quer-me parecer que desta vez ela está presa; escolheu enfim, pensou Aires.
Flora falou-lhe da presidência, mas não lhe pediu segredo, como as outras pessoas; confessou-lhe que não queria ir daqui, fosse para onde fosse, e acabou dizendo que tudo estava nas mãos deles. Só ele podia despersuadir o pai de aceitar a presidência. Aires achou tão absurdo este pedido que esteve quase a rir, mas susteve-se bem. A palavra de Flora era grave e triste. Aires respondeu, com brandura, que não podia nada.
— Pode muito, todos atendem aos seus conselhos.
— Mas eu não dou conselhos a ninguém, acudiu Aires. Conselheiro é um título que o imperador me conferiu, por achar que o merecia, mas não obriga a dar
conselhos; a ele mesmo só lhos darei se mos pedir. Imagine agora se eu vou à casa de um homem ou mando chamá-lo à minha para lhe dizer que não seja presidente de província. Que razão lhe daria?
Não tinha razões a moça; tinha necessidade. Apelou para os talentos do ex-ministro, que acharia uma razão boa. Nem se precisavam razões, bastava o falar dele, a arte que Deus lhe dera de agradar a toda a gente, de a arrastar, de influir, de obter o que quisesse. Aires viu que ela exagerava para o atrair, e não lhe pareceu mal. Não obstante, contestou tais méritos e virtudes. Deus não lhe dera arte nenhuma, disse ele, mas a moça ia sempre afirmando, em tal maneira que Aires suspendeu a contestação, e fez uma promessa.
— Vou pensar; amanhã ou depois, se achar algum recurso, tentarei o negócio.
Era um paliativo. Era também um modo de fazer cessar a conversação, estando a casa próxima. Não contava com o pai de Flora, que à fina força lhe quis mostrar, àquela hora, uma novidade, aliás uma velharia, um documento de valor diplomático. "Venha, suba, cinco minutos apenas, conselheiro".
Aires suspirou em segredo, e curvou a cabeça ao Destino. Não se luta contra ele, dirás tu; o melhor é deixar que pegue pelos cabelos e nos arraste até onde queira alçar-nos ou despenhar-nos. Batista nem lhe deu tempo de refletir; era todo desculpas.
— Cinco minutos e está livre de mim, mas verá que lhe pago o sacrifício.
O gabinete era pequeno; poucos livros e bons, os móveis graves, um retrato de Batista com a farda de presidente, um almanaque sobre a mesa, um mapa na parede, algumas lembranças do governo da província. Enquanto Aires circulava os olhos, Batista foi buscar o documento. Abriu uma gaveta, tirou uma pasta, abriu a pasta, tirou o documento, que não estava só, mas com outros. Conhecia-se logo, por ser um papel velho, amarelo, em partes roído. Era uma carta do Conde de Oeiras, escrita ao ministro de Portugal na Holanda.
— É o dia das antiguidades, pensou Aires; a tabuleta, o tinteiro, este autógrafo...
— A carta é importante, mas longa, disse Batista, não podemos lê-la agora. Quer levá-la?
Não lhe deu tempo de responder; pegou de uma sobrecarta grande e meteu dentro o manuscrito, com esta nota por fora: "Ao meu excelentíssimo amigo Conselheiro Aires". Enquanto ele fazia isto, Aires passava os olhos pela lombada de alguns livros. Entre eles havia dois Relatórios da presidência de Batista, ricamente encadernados.