A paixão que tenho pelo movimento artístico barroco se estende para além da arquitetura. Estou me deleitando com Inverno de Antonio Vivaldi, enquanto observo a paisagem lá fora. Minha mãe costuma falar que sou fina demais, que foi meu estudo que me deixou assim. Continuo sendo a mesma pessoa simples, que morava num pequeno apartamento de um prédio duplex no subúrbio de Paris. Era responsável pela curadoria de algumas obras de artes e recebi o convite para trabalhar em Milão.
Optei por ir de trem. Por mais que seja uma viagem demorada, gosto de ver por onde vou passar. O táxi para diante da estação Gare de Lyon, eu efetuo o pagamento e saio. Pego a mala que o motorista me oferece, agradeço e rumo ao interior. Perdi a conta de quantas vezes vim admirar cada mínimo detalhe desse lugar. Conheço como a palma da minha mão. Nada me impede de babar por outros movimentos, ainda mais tendo Louvre nessa cidade tão linda.
Caminho em direção ao guichê, a fim de embarcar e por fim, me encaminho ao trem. A moça me guia até o meu acento. Coloco a mala no compartimento acima e sento. Abro a playlist do meu reprodutor de música e olho as opções. Seleciono o artista Bach e sigo olhando.
— É raro encontrar pessoas nos dias de hoje que apreciem música clássica — diz uma voz masculina, em francês, e eu olho na direção, encontrando um homem alto mexendo no compartimento de malas de mão. — Ainda mais artistas do período barroco.
— Eu sei — me pego falando e ele me olha. — E pensava assim, até ter a turma cheia de alunos fascinados por ela.
— Desculpe se lhe atrapalhei. — Dá um pequeno sorriso. — É que sou um apreciador e sempre me surpreendo quando encontro alguém.
— Qual seu artista favorito? — Observo-o sentar ao meu lado e lembro que estou na cadeira vinte e três. Esperava que homens tivessem problema com o número seguinte.
— Vivaldi. Não sei ouvir As Quatro Estações sem me arrepiar.
— Vim ouvindo.
— O que você faz que tinha uma turma?
— Na graduação. — Dou um pequeno sorriso. — Hoje, sou curadora e estava responsável para cuidar de algumas obras.
— Interessante. Vou deixar você ouvir sua música. — Sorri. — Desculpe atrapalhar você.
— Não atrapalhou. — Volto a atenção para meu reprodutor de música. — Como você conhece artistas barrocos? — Olho-o outra vez.
— Minha irmã. Ela é violinista e faz parte da maior orquestra da Itália.
Ergo as sobrancelhas.
— Jura?! Que demais.
— Tenho um orgulho absurdo dela. Desde criança era apaixonada por música clássica. Tenho um vídeo dela solando. — Pega um aparelho do bolso interno do blazer e eu retiro meus fones. Olho pela janela, enquanto ele mexe. — Aqui. — Oferece o aparelho. — Pode pegar. Se eu ver, vou chorar.
Pego. Estamos na classe A. É um vagão luxuoso e tranquilo. Não é a primeira vez que estou num. Costumo viajar, nas férias, pela Europa e sempre que posso, estou num trem.
Na tela do imenso smartphone preto, uma moça está de pé e começa a tocar Primavera no violino. Eu me arrepio. Ela parece muito à vontade. Tem os cabelos escuros, como os do homem ao meu lado, contidos num rabo de cavalo, a pele clara. Talvez tenha a mesma altura que eu. São dez minutos de vídeo e eu me emociono.
— Ela toca muito bem. — Seco as lágrimas.
— Tome. — Oferece um lenço. — Desculpe por a emocionar.
— Não precisa pedir. — Pego e devolvo o aparelho. — Entendi porque disse que se emociona. — Sorrio e seco as lágrimas. — Ela toca muito bem.
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Duale
RomanceMarjorie Blanc é contratada para trabalhar como diretora da curadoria de obras de arte em Milão. Na viagem que faz de trem, deixando Paris para trás, ela conhece Vittorio Montanari, um engenheiro apaixonado pelo movimento gótico.