♫ Parte 1: intro
Meus dedos não se movem pelas cordas. Eles tremem assim que finalizo um acorde e me deixam no completo silêncio da sala de oficina da Musas de Minas. Um nó aperta minha garganta ao mesmo tempo que a angústia corre pelas minhas veias: não consigo mais tocar.
Abraço o violão marrom apoiado nas minhas coxas e encolho na cadeira maciça de frente para o quadro branco. O restante das explicações da orientadora Maristela Arantes na superfície lisa me engolem na penumbra. A penúltima aula da oficina de música terminou há alguns minutos e minhas pernas não foram capazes de me levar para longe daqui. É irônico que eu esteja em uma das escolas de música mais prestigiadas do Brasil em busca do meu sonho, enquanto a única coisa que me permitiu estar aqui me impede de alcançá-lo.
Minha boca se curva em um sorriso cansado ao me lembrar de quando tudo era flores há algumas horas atrás. A canção que eu vinha trabalhando nas orientações semanais em turma com a Maristela estava na fase final. O arranjo de ritmo, harmonia e melodia tinha tudo o que aprendi de música estudando por conta própria desde criança e com as pontuações de Maristela, uma grande professora e artista querida no estado, não tinha como falhar.
— Você tem um ótimo material em mãos. Tem técnica e criatividade na canção. Isso realmente me impressionou, conhecendo sua trajetória — Maristela se apoiou no tampo da mesa ao me entregar a folha da composição. Meu coração pulsava rápido por ter tocado para ela sem desafinar tanto ou errar muitas notas. — Mas te falta uma única coisa. O que você tem agora não serve para a Musas. Quero que recomece.
Massageio minha têmpora junto de um suspiro. Seu olhar penetrante e as duras palavras fazem minha cabeça rodar mesmo depois que ela e os outros participantes deixaram a sala.
O cheiro amadeirado do violão me traz de volta e meus dedos envolvem seu braço mais forte. Pela primeira vez em meus vinte anos, estava orgulhosa de mim por ter lutado para conseguir a vaga na oficina. E agora...
O ruído do celular estremece acima da mesa e quase pulo da cadeira. Em meio a penumbra, vejo o nome de dona Glória brilhando na tela com um pedido de chamada de vídeo. Deixo o violão sobre o tampo amarelado e corro para fora da sala.
— Oi, mãe! — Escoro na parede ao lado da porta e abro meu melhor sorriso.
— Uai, menina, achei que cê nem ia atender! — Diz na maior altura, apesar do celular estar perto o suficiente para seu rosto se encaixar certinho na minha tela. Rio por dentro de seu jeito expansivo e caloroso. — Tá na oficina ainda ou já tá no quarto alugado? Nem me avisou, olha a hora. São quase seis da tarde!
— É que vou estudar um pouco mais — minha mão treme com o desconforto da mentira lavada que a faz sorrir, emocionada. — Ainda fazendo doces? — Mudo de assunto logo que meus olhos batem nas cordinhas do avental amarrado no pescoço de pele marrom, cor que herdei dela, e no cabelo cacheado como o meu coberto por um lenço rosa.
Minha mãe dá uma risadinha como uma criança que foi pega fazendo bagunça e afasta o braço, mostrando os tabuleiros cheios de brigadeiro, doce de leite e goiabada na bancada da pia. Meu estômago dá sinal de vida por estar longe dessas belezuras há quase seis meses quando me mudei para Santana do Adágio, no interior de Minas Gerais.
Antes de vir para fazer oficina, morava na capital com minha mãe e a ajudava na divulgação dos doces pelas redes sociais ou nas feiras de artesanato da cidade. Assim como ela, formei no Ensino Médio e não consegui entrar em uma faculdade. Depois da morte do meu pai, as coisas ficaram difíceis em casa e tivemos que trabalhar juntas para pagar as contas e nos mantermos. Com a indicação de uma amiga, consegui uma bolsa para um mini curso de marketing para microempreendedores e animei dona Glória a transformar em renda aquilo que ela mais amava fazer: cozinhar doces.
Não foi fácil no início e se não fosse pelo apoio que uma dava a outra, teríamos desistido. Reorganizando a vida devagar, os doces ganharam popularidade. Minha mãe foi juntando uma graninha aos poucos para caso houvesse uma emergência e eu ganhava por fora administrando as redes sociais de outras pessoas através de recomendações.
Quando a universidade local divulgou o projeto das oficinas de música com a possibilidade de entrada definitiva ao final, minha mãe me deu todo o dinheiro que guardou e apostou alto no meu sonho junto comigo. Sou grata por ter uma parceira e amiga fiel ao meu lado todos os dias. Quero ser como ela, que faça chuva ou faça sol, continua trilhando a vida.
— Olha aí o que eu fiz — abre o forno e aponta para o ouro da culinária mineira, os famosos e irresistíveis pães de queijo. Salivo como um cãozinho.
— Você quer me torturar, né, dona Glória? — Apoio a mão na cintura e faço um bico de falsa repreensão.
— Quero é que você volte logo, mas feliz da vida e com uma vaga para estudar música, se tiver que ser — brinca, agitando o braço em comemoração do outro lado. Seus olhos úmidos não me escapam e sinto meu coração apertar. — Minha saudade fica até pequena do tanto que torço pro cê, menina. Cê é a parte mais brilhante da minha vida, viu?
Aperto os lábios e concordo com a cabeça, alheia a qualquer pessoa passando por mim no corredor.
Encerro a chamada transbordando em um misto de sensações sufocantes no peito. Os rosto dos meus pais e de Maristela embaralham em meus pensamentos.
Volto para pegar minhas coisas na sala e saio disparada pelo corredor. Minha mãos suadas apertando a folha da canção marcada em vermelho.
Tenho apenas uma semana, não dá para recomeçar. Preciso terminar a música com tudo que me resta, ou me amaldiçoaria por jogar pela janela o esforço da minha mãe.
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As Partes que Ressoam no Tempo
RomanceLira sempre admirou a música e se conformou em tocar violão apenas para si, desde que se mudou para Belo Horizonte após o falecimento do pai. Quando os esforços de seu trabalho junto com a mãe rendem a oportunidade de fazer uma oficina na conceituad...