♫ Parte 4: refrão
Pego um post-it amarelo, escrevo o horário da minha apresentação de amanhã em letras garrafais pretas e o colo na cabeceira da cama do quarto alugado. A última aula da oficina terminou hoje sem a presença de Maristela. O auditório foi liberado por ela para que pudéssemos ensaiar e nos acostumar com a acústica para o dia seguinte. Estaria mentindo se dissesse que não estou ansiosa, mas o alívio me envolve como uma brisa.
Thales de Mello, o músico-fantasma, não me desapontou em sua parte do acordo. Todas as noites, após as oficinas, repassávamos os apontamentos um do outro e moldávamos cada parte da canção. Não foi um processo de mil maravilhas, devo reforçar. A inflexibilidade em conjunto ao raciocínio de ancião de Thales era o pontapé inicial da maioria de nossas brigas. Como se não bastasse mexer em toda a estrutura da música, ele ainda queria recomeçar algumas partes. No final, acabei cedendo a algumas sugestões. Sua habilidade e entendimento sobre composição são brilhantes, então quem sou sou para contestar?
Giro o canetão preto entre os meus dedos e dedilho as cordas do violão com um sorriso satisfeito. O resultado final não ficou como eu esperava, mas toda vez que lembro da energia calorosa da minha mãe ao telefone ontem, quando contei sobre a canção, tudo começa a valer a pena. Meu peito se aquece ao imaginar o quão orgulhoso meu pai deve estar, de onde quer que esteja.
Largo meu corpo encostado na cabeceira e solto o ar à medida que sinto meu dedos se movendo em cima lençol. Agradeço em silêncio por conseguir voltar a tocar ontem. O medo, a preocupação em não dar conta e a insegurança são os ecos da conexão entre nós e aquilo que amamos fazer. Se deixarmos essas vozes se infiltrarem, ficaremos paralisados no caminho vazio assistindo nossos sonhos escorrerem para onde nunca poderíamos alcançar. E para ser honesta, acho que não conseguiria romper esse fluxo se estivesse completamente sozinha.
Meus olhos recaem para o corpo deitado ao meu lado e noto que os olhos cor de âmbar de Thales me encaram como janelas de uma alma que já viu muito do mundo.
Ajeito o violão na cadeira e deito no travesseiro com minhas mãos descansando sobre a barriga. O céu noturno preenche o lado de fora.
— Por que está preso àquela lira? — As palavras se formam sem que me dê conta e não me atrevo a virar o rosto em sua direção.
O silêncio que nos envolve é constrangedor. Quase desisto da resposta, quando sua voz grave e bem afinada me surpreende:
— Foi o primeiro instrumento que aprendi sozinho antes do piano — suspira. — Com doze anos, muitos me conheciam pela ótica do dom e do talento, assim como meus pais ao me colocarem na antiga Musas. Usar da arte para ganhar prestígio em meio aos nobres portugueses era o mais importante para eles. E uma criança sabe quando brinca por amor ou por obrigação.
Embora seu rosto esteja tranquilo, a dor e a raiva daquela época vazam por seus olhos distantes fixos ao teto e corpo tenso.
— Nunca amei nada como amo a música e tomei os estudos com piano como uma forma de me tornar melhor para que todos me reconhecessem — continua ao apoiar os braços atrás da cabeça. O pequeno sorriso reflete a melancolia de suas roupas escuras e simples. — Fiz do conhecimento minha arma e derrubei todos até ser o melhor aluno da antiga Musas. Os oito anos seguintes me renderam a sobrevivência aos meus pais oportunistas e o concerto que me tornaria um pianista digno, o melhor da minha idade.
Seu rosto rígido se virou para mim e meu peito se retraiu com o que viria.
— Qualquer um via a euforia irradiando por mim no grande dia — voltou a olhar para cima e apertou os lábios por um momento. — E uma hora antes de pisar no palco, meu coração parou para sempre.
O ar entra sutil pela minha boca semiaberta. Sua dor se encaixa no meu medo. Não consigo sequer imaginar...
— Estou no limbo entre a vida e a morte desde então. Meu espírito está preso à lira e tentei me libertar através de acordos malsucedidos, claro. Acredito que se alguma música que detenha o meu conhecimento for ouvida e reconhecida pelas pessoas, vou conseguir alcançar a paz para sair daqui.
Nosso olhar se encontra na mesma hora e levanto a sobrancelha em falsa indignação.
— É por isso que está me usando?
— Espero que da mesma forma que tem me usado — sua ironia puxa minha risada e o clima denso se dissipa.
Aproveito para apagar a luz e ele se levanta junto comigo. Assim que me acomodo na cama, Thales senta na escrivaninha ao lado. Seu olhar âmbar se destaca na luz que entra pela janela à medida que o sono sopra em minhas pálpebras.
— Não a escolhi por acaso. Assisti você nas oficinas e nas horas debruçadas em livros na biblioteca. Vejo seu amor e potencial para música e talvez, só talvez, eu fique feliz que você se mova por vontade própria.
Meu corpo relaxa e murmuro em meio à batalha perdida contra o sono:
— E talvez, só talvez, ficaria feliz em ser a lira que pode te libertar amanhã...
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As Partes que Ressoam no Tempo
RomanceLira sempre admirou a música e se conformou em tocar violão apenas para si, desde que se mudou para Belo Horizonte após o falecimento do pai. Quando os esforços de seu trabalho junto com a mãe rendem a oportunidade de fazer uma oficina na conceituad...