D I A

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O VENTO DERRUBA a xícara de plástico rosa escuro. O resto do leite morno que ainda estava ali dentro esparrama pelo carpete já bem manchado do chão da área.

Prendo a respiração e olho por cima do ombro, pensando que vou escutar alguma reclamação da minha mãe sobre isso, mas consigo escutar apenas o barulho baixo do tecido batendo no tanque. Ótimo, ela está lavando roupa! Viro o tapete para esconder a mancha e continuo a brincadeira.

Não tenho dever de casa para fazer, por isso posso passar a tarde inteira brincando com a boneca que ganhei de dia das crianças. Quando me pediram para escolher o meu presente, eu falei que queria uma boneca igual à da vizinha, que a gente segurava a mão dela e quando puxávamos, a boneca andava.

Mas meus pais não podem comprar uma dessas para mim, e não fiquei triste quando ganhei a minha Amiguinha. Ela não andava, mas tinha olhos grandes que fechavam quando eu a deitava e um sorriso bonito e rosado.

A tarde se passa com uma velocidade que mal senti, e quando olhei para o céu, já começo ver os indícios da noite que começa a cair. Fico um pouco chateada por cortar a brincadeira assim tão de repente, mas não posso me distrair do meu ritual, e não tenho tempo a perder.

Tudo culpa do meu irmão mais velho, mas não consigo mais deixar a boneca em qualquer lugar. Minha mãe já conversou comigo, e até brigou com ele por conta das histórias que ele me contou, mas não consigo tirar aquilo da cabeça.

Ele me garantiu que a minha boneca se mexe quando eu não estou olhando. E não da maneira legal que nem o Woody nos filmes do "Toy Story", mas da maneira malvada, que nem o Chuck, em "Brinquedo Assassino". Minha mãe me garantiu que ele inventou tudo, mas a possibilidade, mesmo que mínima, daquilo ser real, me faz fazer aquilo todos os dias.

Caminho até o meu quarto e, depois de retirar um pilha de roupas de cima da caixa simples de papelão duro, levo a caixa comigo. Confiro se está tudo ali dentro e então volto para a área de azulejos mornos onde a boneca estava no mesmo lugar que a deixei: sentada imóvel na cadeira de balanço.

Levanto a boneca de plástico e com cuidado ajusto seus braços e pernas, fazendo com que ela ficasse em pé na minha frente. Ela é bem alta, com o topo de sua cabeça loira chegando a poucos centímetros do meu queixo.

Retiro a tampa da caixa, o plástico transparente que fica ali foi colado no lugar com muito cuidado por mim. Deito a boneca e seus grandes olhos azuis não se fecham como deveriam. Solto a boneca de uma vez, engolindo um grito, mas assim que a cabeça dela bate contra o chão, os olhos tremem e fecham. Deveriam ter ficado presos em alguma coisa. Claro que sim, eu já tive bonecas assim.

Os arames de metal cobertos com plásticos já estão bem gastos por conta desse meu ritual diário de amarrar a minha Amiguinha novamente dentro de onde ela veio. Eu até já peguei um arame que minha mãe usava para amarrar o pão porque não quero amarrar a minha boneca apenas com metal.

Por mais que os arames estejam bem gastos, usados, sei que ainda cumprem bem o seu papel, estão bem firmes. São cinco no total: dois para segurar os braços na altura do cotovelo, dois para segurar os pés bem na altura do tornozelo e um que segura a boneca pelo pescoço.

Sempre deixo o arame do pescoço por último. E só o coloco depois de dar um beijo na bochecha fria da boneca, e alisar tranquilamente seus cabelos, sussurrando para ninguém em particular que tudo ficaria bem, que ela está bem.

Fecho a caixa e a levo para um canto da sala. Coloco a tampa da caixa encostando no chão, e depois vou para o meu quarto, apanhando a pilha de roupas para colocar acima do papelão com a boneca dentro. Me sentindo satisfeita com a prisão que fiz para a boneca, me sinto preparada para a noite, dou um tchau para a caixa soterrada e murmuro um "até amanhã". 


(709 palavras)

AmiguinhaOnde histórias criam vida. Descubra agora