AR ME FALTA quando algo macio está sendo pressionado em cima da minha boca e nariz.
Abro os olhos assustada e vejo que é meu irmão ali. Abro a boca por baixo de sua mão, mas ele ergue o dedo indicador, e coloca sobre os seus próprios lábios, pedindo que eu faça silêncio, balançando a cabeça negativamente.
Nunca vi essa expressão nele antes, e acabo fazendo o que ele pede. Quando percebe que não vou gritar, ele retira a mão do meu rosto e minha garganta fica esquisita, não consigo segurar uma tosse apertada que sai.
Pedro arregala os olhos e coloca um travesseiro sobre meu rosto, mas não aperta, percebo que ele o usa apenas para abafar o som.
Olho para o relógio da cabeceira e são quatro e doze da manhã. Ainda está escuro lá fora, mas a luz do quarto está acesa. Mamãe não está mais dentro do quarto e um calafrio incômodo sobe por minha coluna.
Algo faz barulho além da porta. É algo abafado e não consigo reconhecer. Os ombros de Pedro se contraem.
— O que está acontecendo? — pergunto baixinho, retirando de cima de mim o lençol que cobre minhas pernas. O ar frio me faz arrepiar, e consigo ver minha respiração saindo pela boca.
Isso não é comum, aqui sempre faz calor. Não tá certo.
Volto a escutar um barulho. Algo bem parecido com o de antes, porém agora está bem mais alto. Mesmo assim ainda não consigo identificar. Pedro pula para cima da cama e me abraça apertado.
— Não vou deixar ela te pegar — ele diz com a voz trêmula.
— Ela quem? — pergunto franzindo o cenho.
Antes que meu irmão possa responder, escutamos um barulho muito alto. Um impacto bem forte, a parede tremeu e coisas pareciam ter sido partidas. A porta do quarto abre num rompante, me assustando.
— NÃO! — ouço a voz da minha mãe. Nem parecia ser a voz dela, mas o choro veio dela.
Ela está se arrastando no chão e uma lágrima escapa de mim quando vejo a quantidade de sangue que está abaixo dela. Mamãe está muito machucada! Sem conseguir me controlar, saio da cama num pulo e é no segundo passo que eu a vejo.
Suas mãos de plástico estão firmes no batente da porta, e só consigo ver parte do seu cabelo loiro e seus grandes olhos azuis. Parece que ela está espiando. Quando aqueles olhos artificiais piscam, meus pés congelam no chão.
A minha Amiguinha piscou para mim.
Ela dá um passo para dentro do quarto e as diferenças nela são sutis, mas facilmente perceptíveis. O vestido que tinha trocado mais cedo está rasgado na manga direita e há uma mancha de sangue que escorre por toda a extensão do seu braço. Os olhos ainda têm aquele brilho sem vida, porém, agora piscam com frequência. O sorriso, sempre discreto numa boca que não abria, agora está rasgado, numa curva cruel e enegrecida.
Os seus membros sempre enrijecidos, agora tem uma mobilidade igual a um ser humano, e vejo sem reação sua mão girar levemente a faca favorita de cozinha da mamãe.
Pedro fica na minha frente, protegendo-me com seu corpo pouco mais alto que o meu.
— Engraçado como ele tinha razão não é mesmo? — a boneca fala, apontando a ponta da lâmina para o meu irmão. Sua voz é estranha, é como se fosse a mistura de milhares de vozes numa só.
— Você precisa pedir ajuda — Pedro diz. — Consegue correr Julie? Vou distrair isso quanto eu puder, mas por favor, seja rápida.
— Não acho que consigo — choramingo baixo. Olho para a boneca e ela não saiu do lugar, ela está olhando para nós dois com um sorriso largo.
— Sinto muito Julie, mas a nossa única chance é se você conseguir... — ele diz.
— Vocês realmente acreditam que tem alguma chance? — todas as vozes na boneca voltam a falar. E dá um passo na nossa direção.
Dou um passo para trás, o medo atingindo um nível que nem sabia ser possível. Pedro também dá um passo para trás, mas o dele é bem mais trôpego e ele acaba caindo em cima de mim.
Abro a boca para reclamar com ele, mas algo quente molha meu rosto. O gosto ferroso escorre pela minha língua e arregalo os olhos ao perceber que aquilo é sangue. Do meu irmão.
A faca favorita da mamãe está enterrada lateralmente no pescoço de Pedro e ele nem ao menos gritou antes de amolecer em cima de mim. O grito sai rasgado do fundo da minha alma e com a visão embaçada de lágrimas, saio debaixo dele e olho para cima procurando pela Amiguinha.
Não a vi ali em lugar nenhum, mas aquilo não me trouxe nenhum alívio.
Corro porta afora e não me permito olhar para a minha mãe em cima da poça de sangue. Ela também não se mexe assim como Pedro. As lágrimas não param de cair. Estou quase alcançando a porta da sala, quando sinto algo prender em meu pescoço.
Machuca muito e eu caio para trás. Levo a mão a garganta e seguro um arame coberto de plástico. Igual o que eu prendia a Amiguinha. Engulo em seco e dói.
— Chegou a hora de te colocar na caixa — a boneca fala e abre um sorriso largo. Ela está a uns quatro passos de distância
Uma língua roxa sai de seus lábios e é comprida o suficiente para chegar até mim, e ela percorre toda a lateral do meu rosto. Aquilo é pegajoso e quente demais. Ela já guardou a língua, mas mesmo assim sinto o rastro dela em meu rosto.
Corro de novo para a porta, mas as mãos de plástico me alcançam depois de poucos passos. Caio de cara e uso os braços para não bater com a cabeça no chão. A boneca que já levantei tantas vezes sem a menor dificuldade agora parece pesar mais do que três adultos. Sufoca.
Ela faz pressão em cima de mim, e não consigo me mover, só consigo gritar quando a boneca pisa no meio da minha coxa direita e faz o osso estalar, quebrando. Sem me dar nem tempo de raciocinar, outro pisão, agora na panturrilha esquerda e mais destroços.
Não vou conseguir correr agora.
A agonia percorreu tão alto por mim que pensei que fosse desmaiar, mas não. Segurando a gola atrás da camisa do pijama, Amiguinha ergue parcialmente meu corpo com facilidade e começa a me arrastar. Fica mais difícil de respirar naquela posição, e só espero que eu fique inconsciente e possa me desligar daquela dor de algum jeito.
Mas o percurso até meu quarto é rápido, e ali no chão, consigo ver a caixa que antes servia para guardar a Amiguinha. Só que de alguma forma a caixa parece maior, assim como os arames que eu usava para prendê-la.
Com a mesma facilidade que eu erguia a boneca todos os dias para guardá-la, ela me ergueu do chão e tentou me colocar de pé, mas por conta do estado das minhas pernas, não consegui me sustentar. Ela então me ergue com cuidado e me coloca dentro da caixa.
O primeiro arame é preso no meu punho direito. A boneca segura sem muitas dificuldades o meu braço esquerdo com o peso do corpo. A amarra de metal não está muito apertada, mas quando eu tento me livrar delas, acabo me machucando. Meu pulso esquerdo foi preso do mesmo jeito.
Se a caixa fosse de papelão, eu até conseguiria rasgar e escapar daqui, mas não parece ser o caso.
Grito a plenos pulmões por ajuda enquanto ela amarra minhas pernas machucadas.
E então vejo o arame destinado ao meu pescoço. A boneca também deixou esse por último.
— Tudo vai ficar bem... Você ficará bem — a voz assombrada sussurra para mim e lembro que falava isso para a boneca todos os dias. Sinto o beijo do plástico em minha bochecha.
A tampa da caixa é colocada, e a boneca gira a caixa, me deixando encarando o chão. Meu peso me puxa para baixo, e sinto o arame em meu pescoço apertar de maneira insuportável. Até os dos meus braços e pernas, que não estavam apertados, começam a incomodar.
Quando as roupas começam a ser colocadas em cima da caixa, a escuridão me engole.
(1398 palavras)
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Amiguinha
Truyện NgắnMENÇÃO "TENEBROSA" NO 1º CONCURSO DE 2022 DO PERFIL @WattpadTerrorLP Aquele presente tornou-se o seu pior pesadelo. Julie ama brincar com a sua boneca nova, sua mais nova Amiguinha. Mas por conta do seu irmão, ela só brinca com a boneca durante o di...