Pedrinho

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Antônio estava há tempos sentado em frente à pequena cama em que se encontrava seu filho. Pelas janelas do quarto, então abertas, um vento frio parecia soprar tudo. Não que houvesse muito o que soprar, pois o local era pequeno e simples: uma cômoda pequena onde guardavam as roupas do menino, um espelho retangular com um trincado na base, um quadro do Sagrado Coração pendendo de uma das paredes, com uma mesinha logo abaixo, coberta com uma toalha de crochê feita pela mãe, já meio amarelada, na qual havia uma Bíblia aberta no Salmo 90, uma imagenzinha da Virgem de Aparecida, além de um relógio que havia cessado seu tic-tac precisamente às 02h12min. E também a cama. Antônio sentava-se num banco rústico e olhava fixamente para Pedrinho. Pai e filho emagreceram muito nos últimos três meses; difícil saber quem se consumira mais.

Uma mosca rodeou as orelhas de Antônio, que tratou logo de livrar-se do incômodo com um safanão, que se pretendia forte, mas que mal conseguiu assustar o inseto, de tão débil. Pudera! Suas mãos tremiam a cada movimento. O pequeno ser voou diretamente para a cama e pousou no lábio de Pedrinho. Apesar de saber que o filho morrera há pouco, foi chocante ver que, ainda que a mosca insinuasse adentrar pela boca levemente aberta, não houvesse reação nenhuma do menino. Estava morto mesmo. Não podia haver dúvidas. Antônio tocou o bicho com outro gesto débil, fazendo-o voar, acompanhando o voo o quanto pôde até ter certeza de que a saíra pela janela. Aquela mosca adentrando pela boca de seu filho seria uma imagem que o perseguiria pelo resto de seus anos.

– Tudo em vão...

Foi o que conseguiu balbuciar enquanto olhava pela janela. "Tudo em vão". Desde o começo da luta, sempre pensou que viria a vitória. Dera-se por vencido somente nos últimos dois dias, quando a situação de Pedrinho já era tal que não permitia mais que se enganasse. Na primeiras vezes, não se importou muito quando ele reclamou de dores na barriga, chegando mesmo a ralhar com a criança, exigindo que deixasse de frescuras. "Uma dorzinha de barriga não é desculpa para não trabalhar". Forçou-o às lides do sítio mesmo com as queixas e isso, agora, pesava em seu coração. Somente depois dos primeiros vômitos é que se convenceu que, talvez, Pedrinho estivesse mesmo doente. A mãe logo se desesperou e Antônio tentou acalmá-la. Não havia de ser nada; talvez uma fruta estragada que havia comido, ou, quem sabe, a água salobra do rio em que costumava a nadar com os moleques dos sítios da redondeza. Jovem ainda, ficaria bom logo. Mas os vômitos persistiram, as dores aumentaram e a preocupação de Maria logo passou para Antônio. Era melhor ver um médico na cidade, pois a Dona Coutinha, vizinha da família, que costumava a fazer as vezes de médica para os moradores locais, não conseguia ajudar muito. Já tentara todos os chás e efusões que aprendeu em sua vida de curandeira, mas os resultados, depois de algumas semanas, eram desanimadores.

– Acho que ele precisa mesmo de um homem de ciência – disse a velha olhando desconsolada a pele amarela de Pedrinho. - Na cidade tem um certo doutor Ângelo, que, parece, consegue tratar bem de crianças.

Mas buscar um médico na cidade não era tarefa das mais simples. Estavam em plena época de chuvas e os quilômetros a serem percorridos mostravam-se cobertos de pura lama. Naqueles meses, Deus os castigara com chuvas mais fortes do que o de costume e havia dias em que a ponte da divisa do sítio ficava encoberta pela água do córrego. Nesses dias, entrar ou sair dali era impossível. Além do mais, havia a questão do dinheiro. Médicos cobram caro e família era simples; nunca faltara nada, mas sobras eram raras. Às vezes, conseguiam algum dinheiro vendendo leite, goiaba ou jabuticaba. Coisa pouca, que, em geral, mal dava para adquirir uns petiscos no armazém: um salame, um doce, uma garrafa de água ardente. Antônio vendeu três vacas para poder pagar o tratamento que doutor Ângelo sugeriu.

– Não vou mentir para o senhor, seu Antônio; nem para a senhora, dona Maria – cochichou para evitar que Pedrinho ouvisse. – O caso requer cuidados. Não sei ainda do que se trata, mas o menino está muito fraco. Muito fraco! Temos que fazer com que coma e que pare de vomitar. Amanhã, volto com um remédio para ele. Vocês precisam dar as doses certinho, sem pular nenhuma. É muito importante. Se puderem, levem o menino todo dia de manhã para tomar um sol. Está amarelo demais.

Doutor Ângelo só voltou depois de uma semana com o remédio. As chuvas não permitiram que viesse antes. E nem que Pedrinho tomasse seu sol matinal. "Está bem pior", pensou o médico, sem nada dizer para os pais. E nem precisava. Todos viam que o menino só fazia piorar e o desespero já tomara conta de Maria, que, quase sempre, só segurava as lágrimas quando estava perto do filho.

O remédio não adiantou quase nada. É verdade que o doente chegou a corar um pouquinho por alguns dias e até a ingerir algum alimento sem voltá-lo. O suficiente para que Antônio também se reanimasse e desse graças a Deus por aquelas três vacas. Mas a melhora logo cedeu à doença e os vômitos recomeçaram, as dores reapareceram e o amarelo da pele se acentuou. O doutor Ângelo retornava ao sítio sempre que as chuvas permitiam, trocava de remédio quando tinha alguma ideia nova, mas, nas últimas três semanas, nem ele acreditava mais.

Pedrinho chegou a esboçar uma nova melhora dois dias antes do fim. Até levantou-se e passeou um pouco pelo quintal; coisa de três minutos. Maria, pela primeira vez desde que tudo começara, demonstrou ter esperanças e acreditou que, talvez, agora, depois de tudo, seu filho finalmente vencia a doença. Mas Antônio manteve-se calado. "É a melhora da morte", pensou consigo. E estava certo. Depois dos três minutos de passeio, Pedrinho sentiu-se cansado e voltou para a cama, não saindo mais dela. A queda, agora, foi abrupta. Tudo se precipitou: os vômitos vinham com sangue e com uma massa que ninguém sabia dizer o que era; os olhos afundaram; a respiração tornou-se ofegante; uma febre (até então, o menino nunca tivera febre) tomou conta do doente. Chamaram o padre Simão, que veio de batina, capelo e estola e com o livro de orações. Trouxe, também, o óleo com que ungiu o pequeno. Sua presença confortou o doente, que pareceu até sorrir um pouco. O sacerdote tentou animar a família e, antes de ir embora, disse estar à disposição para qualquer coisa.

Em seus últimos minutos, os olhinhos do menino começaram a revirar e a respiração tornou-se ofegante. Falou algumas coisas desconexas. Fixou-se um pouco no Sagrado Coração, deu um suspiro profundo e a respiração cessou. Maria caiu em desespero e começou a gritar descontrolada. Seu sobrinho Chico, que fora chamado às pressas para tentar dar algum apoio, abraçou-a com toda a força.

– Calma, tia! Calma! Ele descansou! Calma!

Antônio levantou-se e parou o relógio; eram precisamente 02h12min. Sentou-se no banquinho e não se levantou mais. Pediu que seu outro sobrinho fosse às pressas chamar de volta o padre Simão. Era necessário arrumar as coisas: preparar um café, biscoitos, limpar a mesa, cavar a cova.

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