Pedrinho já havia ido a um velório antes. Quando ainda era pequenino, com cinco ou seis anos (Antônio não o saberia dizer), o irmão de Maria morrera subitamente no dia de seu próprio aniversário. Seu nome era Baltazar, casado com Inês e que vivia num sítio ali perto, a cerca de cinquenta minutos de charrete. Tinham três filhos, com quem Pedrinho gostava de brincar.
O fim de Baltazar envolveu-se em mistério. Tinha apenas 43 ou 44 anos. Segundo se contou à boca miúda, saiu cedo para cuidar da plantação de milho e tocar as vacas, como fazia todo dia, enquanto Inês ficou em casa. E, como sempre, preparou o almoço para o marido num pequeno recipiente: um pouco de arroz e feijão, pedaços do porco que haviam matado para o Ano Novo, mas que ainda não tinham comido por completo, banana, ovo cozido e um pouquinho de alface, mirrada, pois as chuvas de fim de ano haviam prejudicado a horta. Por volta das nove e meia da manhã, foi procurá-lo para entregar o prato, mas não o achou na plantação. Um pouco confusa, olhou para o pasto, que ficava mais abaixo. As vacas estavam lá, mas nem sinal de Balthazar.
Sentiu um presságio ruim e balbuciou alguma pequena oração, rogando aos céus que estivesse tudo bem. Voltou para a casa com o prato e o deixou na mesa, esperando ter algum sinal do marido em breve. Nos minutos seguintes, sentia a garganta colar. Resolveu voltar à plantação. Talvez ele tivesse se ausentado por alguma razão e toda a angústia que se avolumava era sem sentido. Deveria estar até mesmo bravo com ela por demorar a lhe trazer o prato. Os passos que deu foram largos, mas, chegando, não o encontrou. Olhou de novo para o pasto. Só as vacas. Um novo presságio veio-lhe como um soco no estômago: e se estivesse caído em algum lugar? As chuvas haviam feito o pasto crescer muito e ali, de longe, não o veria. Resolveu ir até lá.
– Ah, meu Deus. Ah, meu Jesus! Valei-me. Que nada lhe tenha acontecido.
Mas acontecera. Assim que chegou ao pasto, não demorou muito para achar o corpo de Baltazar. Gritou enquanto sacudia o pobre homem com todas as suas forças. "Baltazar! Baltazar! Ai, minha Nossa Senhora! Que tragédia! Que tragédia". Mas estava mesmo morto. Inclusive, o contato com o pasto úmido e com o chão molhado já havia gelado o corpo e a sensação de tocar na pele fria do esposo causou-lhe um misto de horror e desespero. Levou-o para casa e nem ela nem ninguém soube explicar, exatamente, como foi que o conseguiu. No velório, alguns diziam que simplesmente tinha colocado o falecido nos braços e corrido com ele; outros afirmaram que pessoas de sítios vizinhos ouviram os gritos e foram ver o que se passava, ajudando a pobre da viúva desconsolada.
Ninguém também jamais soube explicar do que ele havia morrido. Antônio conversou com muita gente e cada um dava versão diferente.
– Foi um raio! Eu sempre disse para o Zinho tomar cuidado em dias de chuva. Cuidar de pasto nestas horas é um perigo. Eu sempre avisei – disse um dos presentes no enterro.
- Acho que não – respondeu outro. – Quando se morre de raio, o rosto do defunto fica contorcido, com os dentes aparecendo. O rosto do Zinho está calmo, como de quem morreu feliz.
– Claro que foi raio! Não viu as unhas dele? Estão pretas, queimadas. Todo mundo que é atingido por raio fica com as unhas assim. Essa hitória de rosto contorcido é bobagem. A gente tem que olhar é nas unhas.
– Já eu ouvi dizer que teve um barulho de tiro logo pela manhã. Será que ele não foi baleado? Deus me livre pensar isso, mas...
– Não! Nada disso! Quando se morre matado, o cadáver sangra pela boca durante o velório. É a forma que o defunto tem de pedir vingança para a família. Não está sangrando. O rosto é de quem morreu calmo. Deus o chamou. Deve ter sido uma morte bonita.
Apesar dos burburinhos, ninguém nunca soube o que ocorrera. Ninguém teve coragem de perguntar à pobre da Inês o que havia acontecido e o mais provável é que ela mesma não soubesse nem como se deu a morte nem como o corpo foi retirado do pasto.
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Velórios de Pedrinho
Short StoryComo uma simples criança vive a morte de um parente. E como parentes vivem a morte de uma simples criança