1 • Ira e fogo

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2002 - NY, Brooklyn.

Às seis da manhã o alarme toca. Bato nele com força, irritada com o raio de sol que entra pela janela e bate em meu rosto. Alguém bate a porta.
- Já vai - respondo, esfregando os olhos ainda com sono porque na noite anterior fui ao cinema com minha amiga Katie.
- Mamãe disse que você não pode se atrasar. - responde Ben, meu irmão mais novo - de novo.
- Avise a ela que estou indo.
- Ela disse que está indo - ele grita e desce as escadas.

Quando olho no espelho do banheiro vejo que estou o rosto todo marcado do travesseiro e o lavo com a água. Meus pais reclamam que é gelada pela manhã mas eu sinto como se mergulhasse em larva. E estranhamente sinto prazer e dor ao mesmo tempo. Tomo um banho rápido e desço para o café. Minha mãe me recebe com um sorriso no rosto e uma xícara de capuccino na mão. Eu não me pareço em nada com ela, nem com meu pai. Muito pelo contrário, sua pele é negra e meu pai, David, tem os cabelos loiros, e isso Ben herdou dele. Mas não me importo. Não lembro de onde vim e nem me importo. Essa é a minha família agora.
- Você e você - Diana diz para nós dois - quero arrumados assim que eu chegar, seu pai vai contar que passou na prova para sargento hoje.
- Mãe! - Nós dizemos ao mesmo tempo em tom de desaprovação.
- Estragou a surpresa - digo, fingindo estar indignada.
- Não finjam, sei que leram a carta. Mas treinem suas reações, vocês foram péssimos - ela diz dando risada - e eu, estou saindo fora também - ela pega a bolsa, segura Ben pela mão e sai.

Ela trabalha como enfermeira em um hospital e a escola dele é bem perto de lá. Já eu sigo para o ponto e espero o ônibus.

Quando chego na escola abraço Katie. E aperto a mão de Tom, que conhecemos a pouco tempo.
- Oi - ele diz.
- Oi, onde você foi ontem? - pergunta Katie, pegando o livro de Química do armário - te mandamos mensagem para nos encontrar no shopping. Perdeu um ótimo filme.

Ele apenas dá de ombros e sorri, mas não perguntamos de novo. Já percebemos que ele não é hapto a desabafar. Mas tenho a impressão de que ele conta algo a ela, não vou mentir, sinto um pouco de ciúme. Ficaria chateada se os dois guardassem segredos de mim.

- Não sei porque você gosta tanto dessa matéria - ele diz apontando para o livro e seguimos juntos para a sala.
- Você não gosta porque não entende, é a única coisa que os... é, que há de legal nessa escola.
- Acho que vou reprovar com o Parkison.
- Não vai não. - ela entrelaça os braços nos nossos - Porque não vamos os três na minha casa para estudar um pouco?
- Proposta tentadora mas prefiro ficar em casa jogando videogame - responde Tom, e Katie revira os olhos.
- Eu também preciso estar em casa hoje, vou jantar com meus pais.

Quando entramos na sala o triozinho de Tessa estava aos cochichos e rindo de Katie, mas ela ignorou e se ofereceu para ir ao quadro responder uns exercícios.
- Você vai ao campeonato de jiu-jitsu? - Pergunto a Tom, sabendo a resposta.
- Você consegue me imaginar batendo num brutamontes daqueles?
- Porquê não?
- Fala sério, olha só pra ela - Karen cochichou ao ouvido de Tessa e riram.
- Algum problema? - pergunta Tom enraivecido, o que as faz murchar.

Até eu me impressiono. Ele é tão calmo que não consigo imaginá-lo numa briga. Katie é uma das garotas mais bonitas da sala, não consigo entender porque a trata assim.
Parkison a parabeniza e ela senta ao nosso lado.

No horário de educação física eu e Tom sentamos nas arquibancadas. Katie entrara para a equipe de líderes de torcida ano passado, e estava no vestuário com as outras. Estávamos calados, mas eu e Tom torcemos internamente para Tessa não perturbá-la.
- Ei - Tom cutuca meu ombro e tiro o fone para ouvi-lo.
- O que foi? - pergunto e ele aponta para o gramado, onde as garotas se alongam - bonitas, mas prefiro as jogadoras de vôlei.
- Não é isso. Katie e Tessa não entraram com as outras.
- Acha que aconteceu alguma coisa? - pergunto, apertando os olhos por conta do sol - vai ver ela só se atrasou.

Procuro por ela e quando olho para o lado vejo que ele já não está mais ali, e o sigo. Thomas é muito magro mas é ligeiro. Quando entramos no vestuário Katie está com o rosto bem colado no de Tessa.
- Você me dá nojo, aposto como rouba dinheiro para estudar aqui, aposto como rouba até a comida que traz - ela grita.

Sinto um onda de raiva percorrer meu corpo e minha pele esquenta. Katie suspira para se conter e cerra os punhos.
- Por favor, você sabe que o ladrão aqui é o seu pai - ela responde com um sorriso mas sei que está com raiva.

Tom se adianta e se põe entre as duas.
- Ah, olha o namoradinho dela.
- Cai fora daqui, você vai se arrepender - ele diz entre os dentes cerrados.
- Sinto pena de você - Tessa o ignora e diz por cima do ombro dele.
Katie desiste de manter o controle e cai no choro. Puxo Tessa pelo rabo de cavalo e a arrasto até o espelho, pressionando seu rosto contra o vidro.
- Porquê você 'tá fazendo isso com ela? - grito no ouvido dela.
Ela geme de dor.
- Hein? Sua filha da puta racista.
- Gwen, deixa p'ra lá - diz Tom.
O ignoro e chego mais perto de seu ouvido.
- Está bem, eu paro. Mas por favor me deixa em paz - Tessa implora.
Por algum motivo sinto alegria naquilo.
Tom e Katie se entreolham assustados. O rosto de Tessa começa a sangrar.
- Ai, está queimando! - ela grita. E vejo um pequeno vapor sair de onde minha mão está contra o a bochecha dela.

Katie se aproxima e me puxa para longe dela, e quando faço menção de partir para cima de novo, Tom me segura. Tento me soltar mas sinto meu corpo fraco e minha visão está embaçada. Antes de desmaiar no chão só consigo ouvir a treinadora e o professor Parkison entrando.
"O que está acontecendo aqui?"
"Esse monstro me atacou"
"A culpa foi sua" Grita Katie em minha defesa, e eu adormeço.

A Herdeira do Fogo Onde histórias criam vida. Descubra agora