Capítulo 1

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Sentia que já tinha tentado de tudo. Ou, pelo menos, tudo o que era lógico. Já tinha mandado mensagem em todas as redes sociais. Obviamente era um dos que tinha comprado o maior pacote de apoio do site de financiamento coletivo. Não era uma fortuna, mas sabia que ajudava bastante com os custos dos vídeos do youtube e do podcast. E realmente tinha uma sensação agradável de saber que estava financiando o sonho do amor de sua vida. Pedro era um cara comum. Um típico cidadão de bem, pagador de impostos. No final dos quarenta anos, faltando apenas dois pros cinquenta, ainda tinha uma saúde e resistência física invejáveis. Corria dez quilômetros, vez ou outra, sem dificuldades, em menos de uma hora. Mantinha hábitos espartanos, e acreditava que esse era o segredo de sua prolongada saúde. Podiam existir fatores genéticos que ignorava completamente. Seu único prazer era, todos os dias, abrir uma cerveja e assistir, de novo e de novo, os vídeos que ela postava no youtube sobre assassinos em série, casos extraordinários e bizarrices gerais. Começara a assistir de forma completamente inocente, pesquisando sobre um caso insano de pessoas que se perderam numa escalada na antiga união soviética. Tinha grande experiência e prazer em escalar, fazer trilhas e se enfiar no meio do mato. Ela tinha dito, com todas as letras, que morria de medo dessas coisas. Pedro era capaz de lembrar - certamente por ter visto tantas e tantas vezes - como o cabelo vermelho acobreado dela tinha se movido suavemente como se um vento dos montes urais tivesse soprado ali confirmando o medo.

Levantava todos os dias no mesmo horário, sem exceções. Sempre que achava que estava sendo muito duro consigo mesmo repetia "se era bom pro Ernest Hemingway, é bom pra mim". Dizia por dizer. Nunca tinha lido nada do caçador aventureiro que ganhara o Nobel por um livro minúsculo. Não que Pedro não gostasse de ler. Só preferia viver. Repetia a frase sobre Hemingway por ter ouvido de seu pai, esse sim leitor voraz. Mas o velho, morto já há alguns anos, repetia essa frase quando abria mais uma garrafa do uísque mais barato que o mercado tinha. Não passava uma hora inteira sem que se pegasse sonhando com as constelações que queria contar nas sardas da pele dela. Imaginava-se horas e mais horas traçando um novo zodíaco, com signos diferentes, todos feitos dela. Era uma forma linda de dividi-la com o mundo! Mas não... o mundo não a merecia, só ele. Acima de tudo achava fascinante como alguém tão jovem e bela era, não só tão inteligente, mas também tão interessada em coisas bizarras. Lembrava que, nos seus anos na polícia militar do Rio de Janeiro, vira coisas que, com certeza, fariam o sangue da jovem parar de correr por um segundo. Um dia, com certeza, teria a chance de contar pra ela essas coisas... ambos deitados na cama, descansando.

Nenhum avanço, por mais carinhoso que fosse, adiantava alguma coisa. Ela demorava muito para falar alguma coisa, quando falava. Responder mensagens pessoais ela não respondia mesmo. Só colocava Pedro se perguntando se ela deixava de responder todas as pessoas, ou se era pessoal. Enfim, ela não o notava. E ele precisava ser notado. Precisava que ela soubesse das horas que passava vendo seus vídeos em loop; precisava que ela soubesse que estava o tempo todo consumindo alguma coisa, uma coisa qualquer, que levava sua imagem ou sua voz. Como a voz dela o deixava excitado. Tinha alguma coisa naquele timbre que se comunicava com o fundo de sua alma. Nunca saberia explicar. Mas precisava contar pra ela. Ela tinha que saber; dois anos foram vividos nessa loucura. Se preparou e saiu, exatamente no seu aniversário de cinquenta anos. Ligou seu carro, nem muito velho nem muito novo mas em ótimo estado, e saiu. Eram 2h da madrugada. As primeiras duas horas dos seus cinquenta anos. Pelas ruas do centro de Niterói, cidade fluminense onde existira por toda sua vida, via todos os tipos de moças, paradas nas esquinas, com muito pouca roupa. Isso seria bom, pensou. Não fodia já havia uns três ou quatro anos, pra falar a verdade. Sempre gostara de foder, mas tinha problemas em lidar com o que está em volta do sexo. Achava mulheres complicadas demais, e homens asquerosos. Mas simplesmente nunca tinha pensado em recorrer às putas. Dirigia devagar, olhando com atenção cada menina das esquinas. Algumas eram realmente bonitas, algumas, notava, estavam bem produzidas mas passavam longe de serem atraentes. Outras, mesmo produzidas, eram feias como um acidente de trem. Pensava consigo mesmo que tem gosto pra tudo. Se elas estavam oferecendo, com certeza alguém estava procurando. Ao virar uma esquina, talvez pelas 3h, estacou. Parou o carro no meio da esquina. Aqueles cabelos! Faixas de cobre encaracoladas sobre os ombros brancos, um tanto bronzeados. Não tinha sardas, mas servia. Com certeza servia. Antes que pudesse falar qualquer coisa, ela encostou em sua janela.

- Boa noite, moço. Tudo bem? - falava num sotaque argentino carregado.

- Oi. - sua voz, como sempre, era calma e ponderada - Entra. Senta aqui do meu lado. - ela obedeceu como se o conhecesse, mesmo que soubesse que não era a melhor ideia entrar sem negociar. Comandos dados por aquela voz grave e calculada eram realmente difíceis de não obedecer. Sua voz era macia. Não combinaram preço. Saíram pelo centro da cidade até a região oceânica. Mais afastada do centro, moravam poucas pessoas nas redondezas. Pedro a levava pra casa. Inês estava desesperada. Já estava sentada ao lado dele havia mais de uma hora, e ele não dizia uma palavra. Não olhava para ela. Olhos fixos na estrada, que ficava cada vez mais distante, erma e escura. Dirigia dentro dos limites de velocidade, mesmo sendo o único carro na rua. Quando chegaram, permaneceram um longo tempo sentados dentro da garagem. Inês não pode saber quanto tempo. O medo, agora muito maior dentro daquela garagem escura, embaçava sua percepção cronológica. Mas sabia que ficaram muito tempo sentados no escuro. Parecia que ele estava numa espécie de transe. Despertou como num estalo, mas sutil. Saiu do carro, deu a volta e abriu a porta.

- Sai. - sua voz era grave, ao mesmo tempo rouca e suave, se é que isso é possível. Mas imperativa, sempre imperativa. Inês saiu do carro. Não tremia, mas estava com medo. Tanto medo que deixou sua bolsa no banco. Bolsa onde Pedro encontrou um canivete e um spray de pimenta. Separou aquelas coisas calmamente, enquanto Inês acompanhava com os olhos embotados cada movimento. A calma de Pedro era opressiva. Como se fosse possível sentir, tocar, a aura de calculismo de seus movimentos. Depois de trancar as peças de defesa da moça em um armário metálico em sua garagem, Pedro andou na direção dela e tocou seu rosto, levemente. Quando a mão encostou na pele do rosto de Inês, suas pernas tremeram e quase caiu. Suas lágrimas, antes tímidas embotando seus olhos pretos, agora corriam livremente pelo rosto sem sardas. Profusas, amargas e conformadas. Via pequenas estrelas brilharem mesmo no romper da manhã enquanto, ainda na garagem, Pedro a penetrava. Chafurdava seus cabelos ruivos como um porco na lama. Fungava e gemia em seu ouvido, penetrando-a sem camisinha e sem autorização. Inês aceitava a agressão. Sua consciência estava em outro lugar. Pedro apertou seu pescoço com muita força. Ela não lutou. Deixou-se ir... parecia mais fácil.

CLANG! CLANG! CLANG! Pedro acordou com o barulho. Vinha da garagem. Havia trancado a porta que dava acesso à casa. Entendeu logo: Inês estava viva. Tinha certeza de tê-la sentido gelada antes de sair de lá. Deve ter sido a temperatura mesmo. Pegou uma faca de churrasco na cozinha e desceu para a garagem. Abriu a porta pra ver Inês batendo com uma chave de boca na fechadura da garagem, na parte que dava pra rua.

- Não vai abrir. Mesmo que você quebre, o ferrolho não vai voltar. Se você quebrar a fechadura, nunca mais vai sair daqui. - Pedro não fez nenhuma questão de esconder nem a faca nem suas intenções. Ela não falava. Estava estática. Ainda segurava a chave de boca, mas não teve presença de espírito de ameaçar Pedro, ou de atacá-lo; sua presença preenchia o espaço como oxigênio. Ele se aproximou, como sempre firme e calmo. Pedro agia como um rolo compressor. Ela já não chorava. Quando, num movimento rápido, a faca talhou seu pescoço de um lado a outro, Inês pensava no seu filho que dormia na casa de sua mãe. A última imagem que cruzou sua mente foi o sorriso do garoto. O vermelho vivo se mesclando com os cabelos dela deixaram Pedro novamente excitado. Mais do que jamais estivera. Com seu corpo ainda quente, Pedro se satisfez de novo. E de novo. E de novo. Perdeu-se nas contas. Enterrava os dedos no talho do pescoço enquanto fodia o corpo inerte da moça. Não era a mesma coisa. Não era quem precisava ser. Uma mala antiga. Uma mala nova. Uma serra tico-tico. Jogou as malas com o corpo exanguinado na praia mais bonita da região. Não era uma praia deserta. Não podia ser. Mas quando passou pela guarita da PM, por volta das 16h, ninguém diria que não estava indo pescar ou tomar uma cerveja na beira mar. Quando voltou com o carro muito mais leve, por volta das 3h da madrugada, ninguém suspeitou. No caminho encontrou outra menina da esquina. Tarde como já era e sem programas, ela entrou no carro sem titubear. Se tivesse olhado pro banco de trás teria visto o descolorante e a tintura de cabelo "vermelho acobreado" compradas antes da ida à praia.


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