Eu monitorava os limites dos arbustos havia uma hora, e meu ponto devantagem na concavidade de um galho de árvore perdera a utilidade. O ventoforte soprava montes espessos de neve que varriam minhas pegadas, masenterravam com elas qualquer sinal de possíveis pedras.A fome tinha me levado mais longe de casa do que eu normalmente ousava,mas o inverno era uma época difícil. Os animais tinham se retirado, entrado maisprofundamente no bosque do que eu poderia segui-los, e a mim, restava caçar osdesgarrados, um a um, rezando para que durassem até a primavera. Não tinhamdurado.Passei os dedos dormentes nos olhos afastando os flocos que se agarravam aoscílios. Aqui não havia troncos de árvores sem casca, evidência da passagem decervos — eles ainda não tinham seguido em frente. Permaneceriam até que ascascas acabassem, e então viajariam para o norte, além do território dos lobos, etalvez para as terras feéricas de Pry thian — onde nenhum mortal ousaria pisar, anão ser que tivesse o desejo de morrer.Um calafrio percorreu minha coluna quando pensei nisso e afastei a sensação,me concentrando nos arredores, na tarefa à frente. Era tudo o que eu podia fazer,tudo o que tinha conseguido fazer havia anos: me concentrar em sobreviver àsemana, ao dia, à próxima hora. E agora, com a neve, teria sorte se vissequalquer coisa àquela altura — principalmente da minha posição no alto daárvore. Eu mal conseguia ver 4 metros adiante. Contendo um resmungo quandobraços e pernas enrijecidos protestaram contra o movimento, afrouxei o arcoantes de descer da árvore.A neve dura estalou sob minhas botas desgastadas, e trinquei os dentes.Visibilidade ruim, barulho desnecessário — eu estava a caminho de mais umacaçada infrutífera.Restavam apenas algumas horas de luz do dia. Se eu não partisse logo,precisaria encontrar o caminho de casa no escuro, e os avisos dos caçadores daaldeia ainda pareciam frescos em minha mente: lobos gigantes estavam àespreita, e muitos deles. Sem falar dos boatos de um povo estranho avistado naárea, alto e sinistro e mortal.Qualquer coisa, menos feéricos, suplicavam os caçadores a nossos deuses,havia muito esquecidos; e eu rezava em segredo ao lado deles. Nos oito anos emque morávamos em nossa aldeia, a dois dias de viagem da fronteira imortal dePry thian, tínhamos sido poupados de um ataque — embora caixeiros-viajantes àsvezes contassem histórias de aldeias afastadas da fronteira reduzidas a lascas eossos e cinzas. Esses relatos, certa vez raros o bastante para serem ignoradospelos anciões da aldeia como boatos, tinham, mais recentemente, se tornadosussurros constantes em todos os dias de feira.Eu arriscara muito ao entrar tanto na floresta mas tínhamos acabado com opão no dia anterior, e o restante da carne-seca, no dia anterior àquele. Mesmoassim, eu preferiria passar outra noite com fome a satisfazer o apetite de umlobo. Ou de um feérico.Não que houvesse muito de mim para se banquetearem. Eu tinha ficadoesquálida a essa altura do ano e podia contar muitas das costelas. Andando o maiságil e silenciosamente que podia entre as árvores, pressionei a mão contra abarriga vazia e dolorida. Sabia qual expressão estaria estampada nos rostos deminhas duas irmãs quando eu voltasse para nosso chalé de mãos vazias mais umavez.Depois de alguns minutos de busca cuidadosa, eu me agachei em umaglomerado de arbustos espinhentos cobertos de neve. Em meio aos espinhos,tinha uma vista relativamente decente de uma clareira e do pequeno riacho quefluía por ela. Alguns buracos no gelo sugeriam que ainda era frequentementeusado. Com sorte, alguma coisa passaria. Com sorte.Suspirei pelo nariz, enterrando a ponta do arco no chão, e apoiei a testa contraa curva tosca da madeira. Não duraríamos mais uma semana sem comida. Efamílias demais já haviam começado a implorar para que eu confiasse nacaridade do povo mais rico da aldeia. Testemunhara em primeira mão até queponto, exatamente, ia tal caridade.Eu me posicionei mais confortavelmente e acalmei a respiração, fazendoesforço para ouvir a floresta por cima do vento. A neve caía e caía, dançando erodopiando, como um nevoeiro faiscante, o branco era fresco e limpo contra omarrom e o cinza do mundo. E, apesar de não querer, apesar de ter braços epernas dormentes, silenciei aquela parte inquieta e maligna de minha mente afim de observar o bosque coberto pelo véu de neve.Houve um tempo em que para mim era instintivo desfrutar o contraste dagrama nova contra o solo escuro e revirado, ou um broche de ametista aninhadoem dobras de seda esmeralda; houve um tempo em que eu sonhava e respirava epensava em cores e luzes e formas. Às vezes eu até mesmo me permitia sonharcom o dia em que minhas irmãs estariam casadas e seríamos apenas papai e eu,com comida o suficiente para todos, dinheiro o bastante para comprar tinta, etempo o bastante para colocar aquelas cores e formas em papel, ou tela, ou nasparedes do chalé.Um sonho que provavelmente não aconteceria tão cedo — talvez nunca.Então, me restava roubar um momento como aquele, admirar o brilho da luzpálida do inverno sobre a neve. Não conseguia me lembrar da última vez quetinha parado a fim de admirar qualquer coisa linda ou interessante.Horas de ócio em um celeiro decrépito com Isaac Hale não contavam;aquelas horas eram vorazes e vazias, e às vezes cruéis, mas nunca lindas.O vento uivante se transformou em um suspiro baixo. A neve passou a cairpreguiçosamente, em punhados grandes e gorduchos que se acumulavam emcada fresta e protuberância das árvores. Hipnotizante — a beleza letal e suave daneve. Eu me encolhi diante do pensamento de precisar voltar para as estradaslamacentas e congeladas da aldeia, para o calor abafado de nosso chalé.Arbustos farfalharam na clareira. Sacar o arco foi uma questão de instinto.Olhei entre os espinhos e prendi o fôlego.A menos de trinta passos estava uma pequena corça, ainda não muitomagricela devido ao inverno, mas desesperada o suficiente para arrancar acasca de uma árvore na clareira.Uma corça como aquela poderia alimentar minha família durante umasemana ou mais.Minha boca se encheu d'água. Silenciosa como o vento que ciciava entre asárvores mortas, mirei.Ela estava tão distraída, tão alheia ao fato de que a própria morte esperava ametros de distância. A corça continuou rasgando tiras de casca, mastigandodevagar.Eu poderia secar metade da carne, e nós poderíamos imediatamente comer orestante — ensopados, tortas... A pele poderia ser vendida, ou talvez transformadaem roupa para uma de nós. Eu precisava de botas novas, mas Elain precisava deum manto novo, e Nestha queria qualquer coisa que fosse de outra pessoa.Meus dedos tremiam. Tanta comida — que salvação. Inspirei para meacalmar, verificando a mira mais uma vez.Mas havia um par de olhos dourados brilhando nos arbustos adjacentes.A floresta ficou em silêncio. O vento morreu. Até a neve parou.Nós mortais não tínhamos mais deuses para quem rezar, mas, se eu soubesseNós mortais não tínhamos mais deuses para quem rezar, mas, se eu soubesseseus nomes perdidos, teria rezado. Para todos eles. Escondido no arbusto, o lobose aproximou, o olhar fixo na corça distraída.Era enorme — do tamanho de um pônei. Minha boca secou. Era um dosimensos lobos sobre os quais eu fora avisada.Jamais tinha visto um tão grande e, mesmo assim, ele permaneciadespercebido pela corça. Se era de Pry thian, se era, de alguma forma, feérico,então virar comida era a menor de minhas preocupações. Se ele era feérico, eujá deveria estar correndo.Mas, talvez... talvez fosse um favor ao mundo, a minha aldeia, a mim mesma,matá-lo enquanto eu estava oculta. Atravessar uma flecha em seu olho não seriaum problema. Mas, apesar do tamanho, ele parecia um lobo, se movia como umlobo. Animal, assegurei a mim mesma. Apenas um animal.Eu tinha uma faca de caça e três flechas. As duas primeiras eram comuns —simples e eficientes, mas que provavelmente não seriam mais que picadas deabelha para um lobo daquele tamanho. Mas a terceira flecha, a mais longa emais pesada, eu comprara de um caixeiro-viajante durante um verão em quetínhamos cobre suficiente para alguns luxos. Uma flecha entalhada de freixo,armada com uma ponta de ferro.Todos sabiam que os feéricos odiavam ferro, mas era a madeira do freixo quefazia com que sua magia curadora e imortal falhasse por tempo suficiente paraque um humano lhes desse um golpe mortal. Pelo menos era o que diziam osboatos. A única prova que tínhamos da eficácia do freixo era a raridade damadeira. Eu estudara desenhos das árvores, mas nunca vira uma com meusolhos — não depois que os Grão-Feéricos as tinham queimado, há muito tempo.Então, restavam poucas, a maioria pequena e retorcida, e escondida pela nobrezaem bosques murados. Passei semanas depois da compra debatendo se aquelepedaço excessivamente caro de madeira tinha sido um desperdício de dinheiro,e, durante três anos, a flecha de freixo ficara aguardada, inutilizada, na aljava.Agora, eu rapidamente a sacava, contendo os movimentos ao mínimo,eficientemente — qualquer coisa para evitar que aquele lobo monstruoso olhasseem minha direção. A longa flecha era pesada o bastante para causar dano —poderia matar o lobo se eu mirasse direito. Se eu abatesse o lobo, a corça fugiria.Se eu abatesse a corça, o lobo iria atrás do meu pescoço ou da carcaça — edestruiria quantidades preciosas de pele e gordura.Meu peito ficou tão apertado que doeu. E, naquele momento, percebi queminha vida se reduzia a uma pergunta: o lobo estava sozinho?Segurei o arco e puxei ainda mais a corda. Eu era boa de tiro, mas jamaisenfrentara um lobo. Achei que isso me tornava sortuda — até mesmoabençoada. Mas agora... Não sabia onde acertar ou com que velocidade eles semoviam. Não podia correr o risco de errar. Não quando só tinha uma flecha defreixo.E se houvesse, de fato, o coração de um feérico batendo sob aquele pelo,E se houvesse, de fato, o coração de um feérico batendo sob aquele pelo,então, que morresse. Que morresse depois de tudo o que aquele povo fizeraconosco. Eu não correria o risco de que ele espreitasse nossa aldeia mais tarde,atrás de massacrar e aleijar e atormentar. Que morresse ali e naquele momento.Eu ficaria feliz em acabar com ele.O lobo se esgueirou mais para perto, e um galho se partiu sob uma das patas— cada uma maior que minha mão. A corça ficou rígida. Ela olhou para os doislados, os ouvidos se esticando na direção do céu cinzento. Com o lobo abaixado afavor do vento, a corça não podia vê-lo nem sentir seu cheiro.A cabeça do lobo pendeu, e o enorme corpo prateado do animal — tãoperfeitamente camuflado na neve e nas sombras — se equilibrou sobre as ancas.A corça ainda olhava na direção errada.Desviei minha atenção da corça para o lobo e, então, de volta. Pelo menos eleestava sozinho — pelo menos nisso eu fora poupada. Mas, se o lobo assustasse acorça, só me restaria um lobo imenso e faminto — possivelmente um feérico —procurando pela segunda melhor refeição. E se ele a matasse...Se eu calculasse errado, minha vida não seria a única a ser perdida. Masminha vida havia sido reduzida a nada além de riscos nos últimos oito anos emque eu caçava no bosque, e eu fazia a escolha certa na maioria das vezes. Namaioria das vezes.O lobo disparou dos arbustos em um lampejo de cinza, branco e preto, aspresas amarelas reluzindo. Era ainda mais colossal exposto, uma maravilha demúsculos, velocidade e força bruta. A corça não tinha chance.Disparei a flecha de freixo no lobo antes que ele destruísse mais a caça.A flecha encontrou o alvo em um dos flancos do lobo, e podia jurar que opróprio chão estremeceu. O lobo uivou de dor, soltando o pescoço da corçaconforme o próprio sangue espirrou na neve — reluzente como rubi.O lobo se voltou para mim, aqueles olhos amarelos arregalados, os pelos dopescoço arrepiados. Seu grunhido baixo ressoou no buraco vazio de meuestômago quando fiquei de pé, a neve se revirando ao meu redor, com outraflecha preparada.Mas o lobo apenas... me olhou, a mandíbula manchada de sangue, minhaflecha de freixo despontando, banal, de seu flanco. A neve recomeçou a cair. Olobo olhou, e com um tipo de atenção e de surpresa que me fizeram disparar asegunda flecha. Só por precaução — para o caso de aquela inteligência ser dotipo imortal, malicioso.Ele não tentou desviar da flecha quando ela perfurou facilmente o olhoamarelo e arregalado.Cor e escuridão giraram, como um redemoinho em minha visão, misturandoseà neve.O lobo desabou no chão.Suas patas estremeciam, e um gemido baixo cortou o vento. Impossível — eleSuas patas estremeciam, e um gemido baixo cortou o vento. Impossível — eledeveria estar morto, não morrendo. A flecha atravessou o olho do lobo quase atéa ponta de penas de ganso.Mas lobo ou feérico, não importava. Não com aquela flecha de freixoenterrada no flanco. Mesmo assim, minhas mãos tremeram quando afastei aneve do caminho e me aproximei dele, ainda mantendo uma boa distância.Sangue jorrava dos ferimentos que eu causara, manchando a neve de carmesim.O lobo batia com a pata no chão, a respiração já mais lenta. Será que sentiamuita dor, ou o choro era apenas uma tentativa de afastar a morte? Eu não tinhacerteza se queria saber.A neve girou ao nosso redor. Encarei o lobo até que aquele manto de carvão,obsidiana e marfim parasse de se elevar e descer. Lobo — definitivamenteapenas um lobo, apesar de seu tamanho.O aperto em meu peito diminuiu, e meu fôlego se condensou diante de mimquando suspirei. Pelo menos a flecha de freixo tinha se provado letal,independentemente de quem e o que ela abatesse.Uma avaliação rápida da corça indicou que eu só podia carregar um animal;e mesmo isso seria difícil. Mas era uma pena deixar o lobo.Embora tivesse desperdiçado minutos preciosos — minutos durante os quaisqualquer predador poderia sentir o cheiro do sangue fresco — tirei a pele do loboe limpei as flechas o melhor que pude.Pelo menos aqueceu minhas mãos. Enrosquei o lado sangrento da pele sobre oferimento mortal da corça antes de jogá-la por cima do ombro. Nosso chaléficava a alguns quilômetros dali, e eu não precisava de um rastro de sangueatraindo todos os animais com presas e garras diretamente até mim. Grunhindodevido ao peso, peguei as pernas da corça e dei uma última olhada para acarcaça fumegante do lobo. O olho dourado que lhe restava encarava o céu,agora carregado de neve, e, por um momento, desejei ter a capacidade de sentirremorso pela coisa morta.Mas aquilo era a floresta, e era inverno.
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bom eu estou lendo e postando entt vou demora mais
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Corte de Espinhos & Rosas
Fantasy"Ela roubou uma vida e agora de pagar com o coração"