2 - Que saudade eu não estava de você...

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"Fica logo ali. Queiram me acompanhar, por gentileza."

Retornando a bolsa às vestes e, por falta de espaço e certa conveniência, deixando para trás qualquer estoque de juízo que lá houvesse, Ahmed acatou o comando. Acompanhando da mulher, deixou-se conduzir por Charles.

O Arkhen, é bom que se diga, fora a mais recente vítima da curiosa enfermidade que acomete àqueles cujo interesse é carinhosamente acariciado. Num piscar de olhos, o monstrengo desconfiado transmutara-se em virtual vencedor do prêmio de melhor atendimento ao consumidor de todo o Mercado. Competição, é claro, que não tinha lá muitos participantes. Pediu-lhes desculpas, dizendo que "assuntos daquela magnitude estavam acima de seu cacife" e precisariam ser tratados diretamente com a "Senhora, em sua propriedade".

Abrindo espaço educadamente na base dos empurrões, cotoveladas e atropelos, Charles evoluiu sem freio pelo frenesi da estrada de terra batida, apinhada de tendas, barracas e seres de todas as espécies, cuja aparência em geral perambulava graciosamente entre os diversos sinônimos de 'horrível'. Um aroma doce roçava de leve as narinas desguarnecidas, massageando-as com seu suave perfume de essência indecifrável. Ahmed apostou em odor de cadáver, mas a mulher indicou a "lama" que surgia acumulada em pequenos montes, lembrando que ali raramente chovia. Então...

Os dois pouco se falaram em todo o trajeto entre onde haviam se encontrado e o "logo ali", que, obviamente, revelou-se mera figura de linguagem. Chegando a um punhado de construções decrépitas, conhecido como 'área nobre', desviaram-se do sarcasmo espalhado pelo chão, abriram a porta com cuidado para não derrubar o resto do prédio e entraram em um arremedo de taberna que certamente encantaria os olhos de um cego que porventura a contemplasse. Seguiram Charles aos fundos da propriedade, onde subiram uma estreita escadaria de fazer inveja a qualquer corredor da morte. Finalmente, chegaram a uma sala que trazia o essencial apenas, e nada de adereços opulentos como, por exemplo, janelas. Sentaram-se em duas cadeiras carcomidas postadas a uma curiosa distância da mesa à frente.

- Ela os verá num instante! - Charles disse, simulando uma mesura que apenas destacou os ossos protuberantes de sua coluna. - Sr. Ahmed, tenha a bondade de aguardar a 1,5m da mesa. Pelo menos.

- Essa é a hora que ela nos dá um chá de cadeira? - brincou a mulher após a saída do Arkhem, descobrindo o rosto e limpando o suor da testa. - Essa sua história com as mesas nunca deixa de me divertir. E parece que é conhecida em todo o continente, não?

- Pois é, Anna, minha fama me precede.

Ahmed respondeu sem entusiasmo, evitando encará-la. Não gostava do efeito que aquelas pupilas vermelhas tinham nele. Passou as mãos suadas pelas calças, sem o menor interesse em prosseguir no diálogo.

- Confesso que não o imaginava tão fundo no poço, meu amigo. - Anna alfinetou, enrolando os cabelos em um coque e prendendo-os com um lápis. - Sabia de suas, digamos, dificuldades recentes, mas tráfico? Isso é arriscado demais, mesmo para alguém com um leque tão vasto de idiotices cometidas.

- Aonde isso vai, Anna? - Ahmed, que media a distância da mesa esticando a perna direita, interrompeu-se. - Na verdade, que tipo de pauta uma jornalista respeitada como você teria no Mercado dos Rejeitados? Duvido que tenha viajado toda a distância do norte do continente até aqui somente para ver esse velho amigo.

- Não imagina o tipo de lugar a que minha profissão exige que eu vá, Ahmed. E o tipo de sujeito com quem sou obrigada a lidar.

- Não imagino nem pretendo imaginar.

- Desconfiei. Mas não, não estou aqui a trabalho. - Ela virou o rosto, procurando os olhos dele, mas Ahmed mirava o teto e nada mais. - Bom, até estou, mas um trabalho diferente dessa vez. Um em que um velho amigo talvez possa me ajudar.

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⏰ Última atualização: Sep 21, 2022 ⏰

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Recurso Escasso. Dossiê nº I: Ahmed & AnnaOnde histórias criam vida. Descubra agora