PARTE I - VENENO: Capítulo Um

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Haviam dias difíceis de se levantar da cama. E não se tratava apenas de sono.

Boa parte era aquela grande apatia tomando conta do garoto nos últimos meses, desde a morte de seu tio Benjamin. Normalmente, Peter costumava chamar o tio apenas de Ben, porém, após não ter mais essa figura por perto, passou a referir-se mais vezes pelo nome completo porque talvez assim houvesse mais espaço para armazenar dentro daquele nome as inúmeras memórias que o jovem carregava consigo. Essas memórias sempre inundavam seus olhos.

Quando, mais uma vez, antes mesmo de ligar as luzes do quarto, o garoto sentiu o gosto de suas lágrimas silenciosas, pensou: se elas viessem dentro de uma lata de refrigerante, com certeza essa lata teria um selo dizendo Sabor Tradicional de Saudade. Ele esboçou um sorriso triste e cansado com o próprio comentário mental. O sorriso se desfez no momento em que a sensação de seu cérebro vibrando duas vezes dentro de sua cabeça, como se fosse um celular recebendo notificações, lhe atingiu.

Em resposta a essa sensação, o jovem de quase dezesseis anos esticou a mão para sua mesa de cabeceira pegando o seu celular, pouco antes do som estridente do alarme começar a tocar. Com as péssimas noites de sono, já era normal Peter estar desperto antes do horário previsto. Então, ele respirou fundo e girou seu corpo pesado no intuito de se sair de debaixo dos cobertores.

Haviam dias difíceis de se levantar da cama. Mas não impossíveis.

Já de pé, sentiu o frio do ambiente arrepiar seus pelos. Desceu as escadas para ir ao banheiro, fez sua higiene pessoal, e no espelho notou suas olheiras ainda maiores, se isso fosse possível. Subiu de volta para o quarto e vestiu o uniforme da escola, colocando o seu segundo uniforme dentro de um compartimento secreto dentro da mochila. Já havia tentado usar uma roupa por cima da outra, mas quase desmaiou de tanto calor que sentiu. E ele já estava ficando bom nessa troca rápida de roupas.

Peter gastou alguns segundos procurando pelos óculos, até lembrar-se de já não precisar mais deles havia algum tempo. Porém, a memória muscular - de quem já foi míope o suficiente para ouvir a frase "quantos dedos têm aqui?" de algum outro garoto implicante que insistia em roubar seus óculos - falou mais alto por alguns instantes. Mas isso era passado. Não os garotos implicantes, mas a necessidade de usar óculos. O jovem desceu novamente as escadas, indo dessa vez para a cozinha, onde encontrou um café da manhã preparado, junto a um bilhete:

                                                           Tenha um dia maravilhoso, querido.

                                                                                     Beijinhos!

                                                                                           - May.

Após a morte de Benjamin, a tia havia conseguido um emprego em um restaurante local. Não pagava muito bem, mas o salário conseguia cobrir as principais despesas. A mulher saía bem antes e voltava bem depois do garoto. Peter sabia muito bem que May também tinha dias difíceis de se levantar, entretanto, ela sempre se levantava. E por isso, ele também. Alimentado, o jovem se demorou olhando um porta-retrato na sala com uma foto dele ainda criança e seus tios. Demorou-se um pouco mais observando as feições de Benjamin.

E antes de sair do apartamento, secou uma teimosa lágrima Sabor Tradicional.

                                                                                     ***

Não foi esforço nenhum encontrar Harry no meio da multidão de alunos apinhados nos corredores da escola. Talvez, a cabeleira ruiva do amigo tivesse alguma influência sobre esse fato. O sobrinho de May já caminhava em direção ao filho do empresário Osborn, e este demorou algum tempo para perceber a aproximação, mas quando notou, abriu um sorriso largo para o amigo.

Teia de SangueOnde histórias criam vida. Descubra agora