Quem somos nós?

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Uma noite estrelada sob o céu da Cidade Fantasma. Qualquer um que circulava por dentre as ruelas ou por suas janelas percebia que o céu estava glorioso, quase claro de tanta luz. Poderia ser uma coincidência – ou não – mas observando esse mesmo céu estava um casal no jardim do templo Qiandeng, sentados sobre a grama, fazendo uma serena comemoração. Havia pães, frutas e até mesmo uma garrafa de licor.

- Um ano de casados. – Xie Lian repetia consigo mesmo. – Você acredita que já se fez um ano San Lang?

- Parece que foi outro dia mesmo. – Enquanto nosso Gege estava reflexivo, olhando para as estrelas, Hua Cheng colocava um pouquinho de licor no copo do marido. A verdade era que Hua Cheng algumas lembranças tristes de Xie Lian embriagado, mas ao mesmo tempo gostava de ver o seu esposo um alto de bebida, falando bastante e com certeza um pouco mais solto. Por isso estava sempre dosando o quanto o Príncipe da Coroa de Xianle iria beber.

- Eu me lembro muito jovem quando minha mãe me falava que eu deveria me casar com Jiang Lan e fazer uma festa inesquecível para todo o reino. Isso chega até a ser engraçado de se pensar. Parecia que casar era algo muito fora da minha realidade ou mesmo dos meus sonhos particulares. Eu só pensava em cultivação, em treinamento e, por isso, eu não poderia sequer considerar qualquer outra meta. Mas hoje... Ter casado contigo foi o momento mais importante da minha vida, o maior, o melhor.

- Que bom que não se casou com Jiang Lan. Tive uma chance. – Hua Cheng sorria de canto vendo seu marido se declarar e expressar o quão feliz estava com ele, mesmo sabendo que parte dessa declaração vinha da bebida.

- Acho que foi a única coisa que tive sorte na vida. – Xie Lian afirmava. – Aliás, eu fico pensando... Sei lá. Que talvez se eu fosse uma mulher você não teria se sentido apaixonado por mim. Afinal, eu sei mais do que nunca nesse um ano de casamento que você gosta de que eu seja um homem. - O Rei Fantasma tentou se controlar, mas soltou um riso desenvergonhado ao ouvir tal ideia. – O que é engraçado, San Lang?

- Nada, somente o fato de que você já se vestiu de mulher dezenas de vezes, inclusive na vez que nos reencontramos depois de tantos anos. E eu nunca te rejeitei.

- Mas... Eu era um homem vestido de mulher. Eu sei que você gosta... enfim, de certas partes minhas. – Apesar de mais solto para Hua Cheng, Xie Lian ainda tinha um pouco de vergonha de falar de sexo abertamente. Os 800 anos de abstinência sexual o afetou ainda em seu linguajar e muitas vezes em seus pensamentos.

- Sim, e existem mulheres que tem pênis. – Hua Cheng respondia como se nada disso fosse uma questão para ele.

- Ah claro! Mas, e se eu tivesse... O outro órgão, toda a biologia diferente? Eu ia ser outra pessoa, a gente poderia nunca ter se aproximado.

- Gege... Eu sempre iria te encontrar e sempre iria me aproximar. Independentemente de quem você seja. - Tal argumentação deixou Xie Lian um pouco perplexo. Ele nunca pensou que seu marido iria gostar dele independente das características sexuais. – E você? Me amaria se eu fosse uma mulher?

Mesmo sendo um assunto que se iniciou no meio de uma discussão regada de bebida, esse já foi um tema de insegurança real para Hua Cheng. Por todos esses anos ele tinha um desejo profundo de se aproximar de seu deus, de seu grande amor. Contudo, mesmo querendo estar o mais perto possível, temia que quanto mais perto chegasse, mais saberia que ele faria o tipo de Xie Lian. E se o Príncipe da Coroa de Xianle não fosse uma pessoa com interesses amorosos? E se ele considerasse o Rei Fantasma feio? E, é claro, considerou profundamente que Xie Lian pudesse ser heterossexual, apenas com o desejo negado devido a cultivação espiritual que realizava.

Era uma verdadeira dor que assolava o coração de Hua Cheng, de ser rejeitado pelo que era. Estaria disposto a viver usando disfarces, mudando sua figura corporal para se aproximar de Xie Lian a todo custo. Mas, no fundo, sentia tristeza de imaginar que seu amado não o amaria por quem ele de fato era.

- Claro. Independente do gênero, da forma, de qualquer coisa, San Lang sempre será San Lang. Só isso importa.

Aquelas palavras acolhiam e dissolviam a insegurança que fazia morada por dentro de Hua Cheng. Xie Lian sempre foi assim: o porto seguro, o colo quando parecia desabar. Não havia motivo para temer.

- Aliás! – O rosto de Xie Lian estava já bastante corado de bebida e, por causa da intensidade da conversa, parece que San Lang deixou de prestar atenção no quanto o marido estava bebendo. – A gente deveria fazer isso um dia. Deveríamos nos transformar em mulheres, experimentar. Estamos casados, somos livres. Podemos viver o que quisermos na nossa relação. Sim, eu vou te provar que eu te amo mesmo quando você for uma mulher!

A sobrancelha de Hua Cheng se levantou em um misto de curiosidade e choque.

- Então está bem. – O Rei Fantasma pegou um pouco da bebida para acompanhar o marido. – Eu sempre me lembro muito bem de todas as palavras de Sua Alteza.

Por fim brindaram a luz das estrelas.

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