O Segredo

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Minha cabeça parecia estar a ponto de explodir com o turbilhão de pensamentos que me assaltava. Por um longo tempo fiquei dirigindo pelas ruas, sem um rumo certo. Eu me sentia traído ao pensar no que eles planejavam pelas minhas costas.
Seria fácil se eu não precisasse voltar para casa nunca mais e pudesse inventar uma outra vida para seguir adiante, mas as coisas não eram assim. Eu ainda era Adam Gilbert, filho de um milionário, um garoto rebelde e menor de idade e, aonde fosse, seria lembrado disso.
Depois de algum tempo, senti-me exausto e com muita fome. Acabei indo para uma lanchonete da Gilbert’s Burger. Embora a sede principal da empresa ficasse em Savannah, meu pai decidira acrescentar mais uma filial na cidade, num lugar mais estratégico, visto que a sede ficava um pouco afastada das partes mais movimentadas.
Eu não sabia o porquê de ter decidido ir para lá. Queria ficar sozinho e nem a fome era tão forte quanto esse desejo, mas fui assim mesmo. Antes de entrar, cessei os passos por alguns segundos na calçada da frente e senti o sol esquentar meu rosto.
Respirei fundo, na tentativa de me recompor.
Quando me senti preparado e concluí estar com as emoções aparentemente controladas, entrei e sentei-me nos fundos, onde as mesas eram menos frequentadas. Para meu infortúnio, porém, o lugar estava mais cheio do que de costume. Um arrependimento imediato tomou conta de mim, mas decidi permanecer ali ao ouvir o estômago roncar mais uma vez.
Percebendo, então, que praticamente todos os atendentes estavam ocupados, chamei uma garota que estava limpando o chão onde alguém havia derramado um suco.

— Ei, menina! Você que está limpando aí.

Ela olhou com incerteza para mim, depois de dar um pequeno sobressalto.

— É, você mesma — confirmei.

Ela parecia desconcertada, como se não quisesse me atender. Logo, ouvi a moça do caixa murmurar para ela:

— Vai lá, é o filho do dono, você tem que atendê-lo.

— Mas, eu não...

— Vá logo! — a moça interrompeu-a e deu-lhe um papel acompanhado de uma caneta. Antes de chegar à minha mesa, vi-a respirar fundo. Talvez nunca houvesse atendido alguém.

Quando chegou, não pude deixar de notar como era bonita, tinha os cabelos ruivos em um castanho alaranjado e seus olhos eram verdes. Sua pele era clara, dando a impressão de reluzir um leve tom de dourado sob o sol que se entranhava pelas vidraças. Era magra, mas não alta e, olhando-a, panoramicamente, parecia que tudo se encaixava perfeitamente. Tentei calcular quantos anos tinha ao fitar seu rosto e constatei que era da minha idade ou mais nova. Provavelmente, não trabalhava ali há muito tempo, pois não me recordava dela.

— O que você… — ela hesitou. — O senhor vai querer? — perguntou ela, quebrando a linha dos meus pensamentos.

— Por acaso tenho cara de senhor? — Não conseguia deixar meu jeito malcriado de lado, mesmo vendo o quanto ela estava nervosa. Eu estava com uma explosão de sentimentos dentro de mim e sabia que qualquer simples incômodo iria me deixar mais irritado.

Ela mordeu os lábios insegura e olhou para baixo quando a encarei.

— Não, senhor... Quer dizer, não... É... Me desculpe! — Eu a deixara mais nervosa ainda, mas não me importava, era mais do que a obrigação dela me atender bem.

— Tudo bem, anota aí. Quero um x-bacon, uma porção de batatas, um suco de... — Parei ao ver que ela não estava anotando.

— Ei! Acho que você veio aqui para anotar meu pedido.

— Ah sim, claro, me desculpe! — Ela posicionou a caneta no papel, pestanejando e franzindo os lábios.

— Ok, vou repetir.

Repeti para ela o que havia dito, com um considerável acréscimo. Meu pedido era sempre bem amplo e, por mais que eu fizesse questão de tudo, às vezes nem tocava em algumas coisas.
Ao observá-la anotando, continuei incomodado com algo. Seu modo de escrever era um pouco descontrolado, mas ela não aparentava ter problemas de coordenação motora, apesar disso. Era algo, no mínimo, curioso.

— Mais alguma coisa? — perguntou ela e seu olhar
parecia implorar que a resposta fosse “não”.

— Não, é só — respondi, para o alívio dela, que saiu apressada em direção ao balcão.

Fiquei um pouco impaciente enquanto a esperava, queria sair logo dali. Ela estava demorando um pouco mais que o normal dos outros empregados e as únicas coisas que tinha de fazer era entregar meu pedido à pessoa que preparava os lanches e depois trazê-lo. Passados alguns minutos, ela chegara e começara a colocar tudo na mesa, mas identifiquei apenas duas coisas que havia pedido.

— Ei! Não pedi nada disso a não ser o x-bacon e as batatas.

— Me desculpe, eu vou levar esses e trazer o certo. — Agora um suor quase imperceptível descia de sua face até o pescoço.

— Espero que isso não demore muito — ressaltei, cruzando os braços em sinal de impaciência.

— Não irá — disse ela, desconfortável, como a maioria das pessoas ficava perto de mim.

Esperei mais alguns poucos instantes e ela apareceu novamente, dessa vez sem demoras como o prometido. Porém, outra vez tive o dissabor de ver os pedidos errados sendo colocados sobre a mesa e comecei a sentir que tudo queria me atingir naquele dia.
Como já não estava com muita paciência, ela se esgotou naquele momento, fazendo-me agir impensadamente ao jogar tudo no chão com um movimento violento do braço, levando todos ao redor a voltarem sua atenção para nós.

— Está caçoando de mim? Está errado de novo. Espero que ao menos limpe tudo isso direito! — gritei, erguendo-me subitamente para encará-la.

Ela baixou a cabeça e vi uma lágrima descer por sua face, mas ela disfarçou e a enxugou rapidamente.

— Por favor, me desculpe — disse ela, levantando o rosto e fitando-me os olhos.

Senti-me um pouco culpado ao ver sua expressão. Mas a culpa não era minha, era dela! Eu não voltaria atrás. Olhei-a uma última vez, mas não disse nada e deixei-a sozinha sob o olhar daquela curiosa multidão.
Entrei em meu carro rapidamente e dirigi até uma rua próxima, onde poderia respirar fundo, antes que viesse algum funcionário dizer-me que sentia muito pelo ocorrido e que isso não iria mais acontecer e todo aquele papo que todos conhecem. Eu sabia que não devia ter ido lá, ficar sozinho era o melhor a fazer.
Depois de passar algum tempo ali, olhei pela janela e vi que o sol já se aproximava do horizonte, luzindo fraco, ao som do murmúrio do vento vespertino. Decidi que iria para casa, pois meus pais já não deveriam estar lá. Após ligar o carro e dar a partida, fiquei pensando em tudo o que ocorrera naquele dia, inclusive na situação embaraçosa com a garota da lanchonete. O que teria acontecido depois? Será que ela estava bem?
Mesmo tendo ficado furioso com o que ela havia feito, não conseguia tirar essas perguntas da cabeça. Mas eu não queria, de fato, assumir qualquer culpa pelo que havia acontecido, pois era muito mais confortante culpá-la em vez de lembrar de seus olhos com um brilho inocente fitando-me com triste- za e confusão.
Após guardar o carro na garagem, olhei para meu relógio de pulso e concluí que as ruas recém- percorridas renderam-me quinze minutos até em casa. Agora eu estava diante da porta de entrada, refletindo na possibilidade de meus pais estarem do lado de dentro, aguardando-me para revelar o restante de seus planos.
Apesar de receoso, decidi entrar, fingindo que meu peito erguido e trêmulo era uma grande armadura contra qualquer situação desagradável que viesse a ocorrer. Mas, ao percorrer os olhos pelo vestíbulo, deparei-me com um intenso silêncio. Nem mesmo Carrie estava por ali.

— Carrie — chamei-a, mas não houve resposta. — Carrie! — gritei e logo ouvi seus passos pesados e apressados aproximando-se.

— Sim — respondeu ela, após me alcançar. Seus cabelos mistos de fios grisalhos e castanhos estavam despenteados, e sua figura franzina e pequena estava disfarçada por um enorme robe de veludo.

— Meus pais estão em casa?

— Não. Creio que só voltarão mais tarde.

— Ótimo. É só isso — respondi e vi que ela sumiu rapidamente no mesmo corredor de onde viera. Comecei a andar entre os móveis, sentindo certo alívio após saber que meus pais não estavam ali.
Mas, ao observar as fotos de casamento deles espalhadas
por todos os lados, meu coração começara a se encher de tristeza e raiva outra vez, o que me estimulou a jogar, violentamente, um dos porta-retratos bem longe, quebrando-o.
Agora, aquele lugar parecia mais desconfortável do que de costume.
De repente, como se todo o peso do ambiente caísse sobre minhas costas, voltei para fora da casa em um impulso, atravessando o jardim e indo para a rua.
A conversa dos meus pais ressoava em minha mente, o que reavivara uma grande fúria em meu interior, a qual, de imediato, quis descontar na primeira coisa que estivesse à minha frente, e esta era a lixeira. Sem nem me importar com quem estivesse observando, comecei a chutá-la impulsivamente.
Entretanto, depois de um tempo, percebi que uma pessoa parara assustada. Quando levantei a cabeça, vi aqueles olhos verdes me fitando assustados outra vez. Era a menina da lanchonete e, assim que a encarei, ela voltou a andar e mais rápido.
— Ei! Espera, volte aqui! — gritei.

Ela cessou os passos e ficou um tempo de costas, hesitando, mas depois se virou lentamente.
Observei-a mais uma vez e fiquei a contemplar seus cabelos ruivos esvoaçarem na brisa da tarde, alguns fios tão leves que pareciam libertos da gravidade. A luz fraca do sol iluminava seu rosto e chamava-me atenção para os detalhes desse, que pareciam enlaçados por uma suavidade simplória, mas genuína.
Todavia, logo voltei meus pensamentos para o que havia acontecido na lanchonete, sentindo-me merecedor de uma explicação palpável.

— Por que fez aquilo comigo hoje? — questionei, aproximando-me de onde estava.

— Não fiz por querer — respondeu ela, desviando seu olhar e entrelaçando as mãos em frente ao corpo.

— Como não? Será que é tão desatenta assim? Você anotou tudo no papel, como pode ter errado daquela forma?

Por mais que tudo aquilo soasse absurdo, ela parecia ser sincera em dizer que não fizera intencionalmente, assim como parecia estar bastante envergonhada. Entretanto, eu só me sentiria satisfeito ao ouvir o porquê de sua atitude. Algo parecia anunciar, em meu interior, que havia uma explicação especial a ser dada. Era como se houvesse algo por trás daquele temor que percebi nela quando me atendera.

— Eu já pedi desculpas e também já descontaram no meu salário, se isso o deixa satisfeito — disse ela, de forma triste, e eu engoli em seco.

— Há algo de estranho no modo em que agiu, e eu sinto isso, vai ter que me falar o que é.

— Por que quer saber? Será que não pode simplesmente esquecer isso e apenas me ignorar quando for lá novamente?

— Não. Eu exijo uma explicação — disse, cruzando os braços, decidido a saber a verdade.

— Por favor...

— Eu posso ficar aqui o tempo que quiser e, se não me falar, sabe que posso despedi-la; ou melhor, pedir que meu pai faça isso — interrompi-a, mesmo que algo em minha mente me acusasse de ser o pior dos mesquinhos.

Ela olhou para o lado e ficou um considerável tempo em silêncio, deixando os olhos vagarem pela paisagem ao redor, embora parecesse não enxergá-la. Apenas momentos depois começou a dizer, antes respirando fundo, como fizera na lanchonete:

— Eu não... Eu não sei...

— Você não sabe o quê? — perguntei, impaciente.

— Me deixe em paz! — ela voltou a andar, mas corri até ela e parei a sua frente.

— É algo tão ruim assim?

— Sim, e se tiver um pouco de bom-senso não me peça mais que lhe revele isso, por favor.

— Mas eu não irei contar para ninguém, pode falar. — Por incrível que pareça deixei que um lado mais gentil despertasse em mim, creio que devido à aflição estampada em seu semblante.

— E como irei confiar em você?

— Eu não iria sair por aí me divertindo com seu segredinho.

— Sinto muito, não posso. É melhor ligar para seu pai e fazer o que disse; me despedir.

— Você é quem sabe — respondi, esquecendo a gentileza. Virei-me e comecei a andar em direção à minha casa.

— Não! — ela gritou, repentinamente. — Não posso perder esse emprego.

Voltei minha atenção para ela e a vi brincar com uma bonita pulseira que estava em seu braço, como se decidindo o que devia fazer.
Depois de desviar seu olhar inseguro para várias direções, enfim me encarou e disse a verdade que eu nunca poderia imaginar.

— Eu não sei escrever bem... — começou ela, com bastante intranquilidade. — Quer dizer... Eu não sei escrever e nem ler quase nada. A única coisa que faço lá é limpar, mas fui forçada a atendê-lo hoje.

— O quê? Você só pode estar caçoando de mim, não é mesmo? Te olhando assim não dá pra imaginar que tem esse lado bem-humorado — disse, rindo copiosamente. Porém, depois de alguns segundos, fiquei pasmo ao perceber que ela estava séria, indicando uma única coisa: era verdade.

— Espera aí, isso é sério? — Ela não respondeu, apenas mordeu os lábios devagar. — Mas... Mas como isso pode ser possível? Você mora em uma cidade como Savannah e não sabe ler, nem escrever? Você nunca foi a um colégio? E seus pais não foram denunciados por causa disso?

Eu estava tremendamente confuso. Como aquilo poderia ser verdade? E quem eram os pais dela que não a deixavam estudar? Ou será que ela não tinha pais?

— Se eu não responder a essas perguntas, ainda serei despedida?

— Não — respondi, dessa vez sem coragem de encará-la.

Ao vê-la se virar novamente para ir embora, sua voz ecoou em minha mente com a frase: “Eu já pedi desculpas e também já descontaram no meu salário, se isso o deixa satisfeito”. Tentei resistir ao desejo que surgia dentro de mim, mas, pressionado ao vê-la se afastar, sabendo que não poderia demorar tanto tempo hesitando, gritei-a novamente.

— Ei! Espere, tem mais uma coisa — disse, indo até ela.

— Eu preciso ir embora, tenho hora para chegar em casa.
— Então você tem um pai ou uma mãe, não é?
— Diga... O que quer falar? — rebateu ela, esquivando-se do assunto.

— Bom, eu posso lhe ensinar a ler e escrever. — Encolhi os ombros, como se a proposta não fosse desafiadora para mim mesmo.

Vi de imediato um brilho se acender em seus olhos, mas se apagar ainda mais rápido.

— Eu não posso, não tenho tempo, tenho que trabalhar e não posso ir para outro lugar depois do trabalho — respondeu ela, como quem joga todo o fardo que tem em mãos no chão, conseguindo me deixar surpreso outra vez.

Eu não podia afirmar, mas parecia haver outro segredo na vida dela que poderia ser ainda pior do que não saber ler e escrever. O mais provável era que seus pais — ou um outro suposto responsável — estivessem envolvidos de uma forma bastante hostil em tal segredo, uma vez que evitava falar sobre eles. Mas, eu não iria prescindir de minha ideia tão fácil; todo aquele mistério deixara-me intrigado. Por isso, resolvi oferecer-lhe minha ajuda de uma forma que lhe fosse mais cabível.

— Você trabalha metade do tempo em que está acostumada e o restante de sua tarde será para que eu lhe ensine a escrever. Mas, fique tranquila, seu pagamento será o mesmo.

— Por que está fazendo isso por mim? — Ela fitou-me com grande surpresa, fazendo seus olhos parecerem maiores.

— Não sei... Quem sabe eu não precise de você um dia também. — Dei de ombros, esquivando-me da gratidão de seu olhar.

— Mesmo assim eu... — Fez uma pausa. — ...lhe agradeço pelo que está fazendo. — Ela liberou o primeiro sorriso desde que nos conhecemos.

— Meu nome é Emily.

— Sou Ada...

— Adam Gilbert — ela me interrompera, dessa vez. — Falam muito de você na lanchonete.

— Imagino que eu receba muitos elogios por lá — ironizei, dando um pequeno riso sem humor.

— Com a primeira impressão que tive de você, acreditei que fosse tudo verdade o que eles dizem, mas agora desconfio que não seja.

— Não se iluda, não sou esse cara bonzinho que está pensando, sou exatamente tudo o que eles falam. Só estou fazendo isso para sair um pouco da rotina e como disse, e vou repetir: quem sabe eu não precise de você.

Ela tentou disfarçar seu sorriso, como se lesse meus pensamentos. Todavia, logo seu semblante preocupado reapareceu ao avistar os remanescentes raios solares, que se despediam no horizonte. Percebi seus movimentos um pouco tensos ao vê-la colocar uma mecha de cabelo atrás da orelha. Ainda assim, mesmo resistindo em observá-la, percebi que esbanjava delicadeza em seus meneios.

— Olha, eu preciso ir. — O tom de sua voz soava com urgência.

— Sim, apenas me diga em que dia poderemos começar e onde.

— Eu não sei, é melhor você decidir. Não conheço muitos lugares.

— Se quiser, podemos começar amanhã e quanto ao lugar — Pensei um pouco. —, eu escolheria o Forsyth Park, pois não é longe da lanchonete.

— Por mim está ótimo. — Um pequeno sorriso emergiu em meio à tensão, como um sinal de sua gratidão.

— Então, me encontre no Forsyth Park amanhã, na parte da tarde, perto da fonte. Se tiver algo em casa, como um livro que queira aprender, leve-o também.

Ela apenas assentiu com a cabeça, ainda com os lábios erguidos num sorriso e se fora.

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