Memórias

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- Falta muito? - André tentou a sorte. Sabia que as respostas seriam negativas, como nas outras vezes. - Tô com fome.


E estava mesmo com fome e frio. Não estava acostumado com o ar condicionado, mas preferia o frio ao calor - era dezembro e os termômetros registravam temperaturas acima dos trinta e oito.

O pai olhou o filho pelo retrovisor e balançou a cabeça. Era uma cidade pequenina, no interior do estado, com poucos habitantes. Ficava afastada da capital, Porto Alegre, e carecia de recursos: ali a vida era mais fácil e simples, sem todas as preocupações relacionadas às metrópoles. Quando haviam se mudado para a cidade grande alguns parentes recusaram abandonar as origens, as raízes que há muito haviam se estabelecido profundamente naquelas terras.

No banco de trás o menino sussurrou algumas palavras quase inaudíveis. A mãe ouviu, como sempre fazia, e sugeriu que dormisse ou lesse algo e foi o fim da conversa.

Não demorou para que André pegasse no sono, embalado pelo balançar do carro sobre as muitas imperfeições da estrada. Cláudia, a mãe, seguiu o próprio conselho depois de alguns minutos e então Jonas era o único acordado. Enquanto guiava o carro, olhou para a esposa adormecida. Os últimos anos haviam sido especiais para o homenzinho que dirigia. Não fosse a mulher sentada ao seu lado, não tinha a menor ideia de onde estaria agora. Sorriu.

Pendurada no retrovisor do carro uma fita lilás estava amarrada firmemente. Ainda se lembrava do dia no qual havia a colocado ali. Era a fita que Cláudia usara para prender o cabelo no primeiro encontro dos dois. Naquela época ainda não sabia que em apenas três anos iriam se casar e, em oito, teriam um filho.

Estava feliz consigo mesmo, pois veria sua mãe, que já não via há meses. À sua frente a estrada o convidava, deserta. Aceitando o convite, pisou fundo no acelerador.

Em algumas horas, chegaria à casa onde crescera. Acordaria o filho, a esposa, e juntos sairiam do carro. A mãe se surpreenderia com a visita inesperada, lhes acolheria e serviria um bom jantar. Conversariam sob o céu estrelado da cidadezinha, que se estendia em todo seu esplendor, ostentando sua infinidade de estrelas longínquas.

A cena que se construía na cabeça de Jonas era feliz e bem estruturada. O que aconteceria em seguida seria, de certo modo, confuso. E, com toda certeza do mundo, nada feliz.



***



André abriu os olhos e avistou sua mãe. Tivera um sonho um tanto esquisito, com fantasmas, dinheiro e frio.

- Chegamos, querido. - Era uma voz doce, conhecida pelo menino desde sempre. Esfregou os olhos e bocejou antes de se levantar. - Vamos, nos ajude a pegar as malas.

Não sabia dizer por quanto tempo havia dormido, mas o sonho fora longo.

Via fantasmas feitos de sonhos e memórias, alguns acorrentados a paredes de tijolos, outros tentando carregar quantidades exorbitantes de dinheiro sem muito sucesso. Um terceiro grupo apenas olhava os demais enquanto tremiam ante a vastidão interminável daquele lugar em ruínas. Eram extremamente magricelas, quase raquíticos, e tinham nada além da mais impassível expressão de dor estampadas nos rostos ossudos.

Um dos fantasmas se engasgou ao morder uma moeda e outro - que já não aguentava levar sua própria quantidade de dinheiro - surrupiou a quantia do que se engasgava...



- André? Acorda! Leva essas duas, certo? - O pai apontava para duas malas de tamanho médio. O menino pegou-as ainda perdido em seus pensamentos. Deixou as bagagens no chão quando o pequeno caminho aberto em meio à grama alta chegou ao fim. Apenas então olhou melhor para o lugar onde estavam.

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