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Kiev soprou a fumaça de seus pulmões e ficou observando o céu se dissolver em tons de laranja na linha do horizonte, sentindo o cano do rifle apoiar-se contra seu ombro. O contato era estranhamente gélido mesmo com o tecido do uniforme protegendo sua pele. Gélido e corriqueiro, no entanto, pela vida que levava.

"Veio fugir do tédio ou se afundar ainda mais nele?" A pergunta veio juntamente com o furto de seu cigarro, protagonizado por Ares no mesmo segundo em que atravessou os arbustos que o separavam de onde Kiev estava. O rapaz jogou-se desleixadamente no chão, tragando o pedaço de câncer que havia acabado de surrupiar, enquanto puxava o próprio rifle para frente, que estava preso ao seu corpo por uma tira grossa de couro, tentando fazer a si mesmo confortável. Em seus lábios, um sorriso terrivelmente cínico contornava o canto de seus lábios mesmo enquanto ele tragava, se é que aquilo era possível.

Encontrar Kiev na beira do Penhasco das Lamentações não era difícil. O lugar era ferrenhamente evitado pelos moradores por sua fama sombria e isso o tornava o melhor lugar do mundo para todo e qualquer um que quisesse ficar em paz com os próprios pensamentos.

Se Ares Gutierrez não fosse seu melhor amigo, claro.

Nesse caso, você teria muito pouco tempo de merecida solidão depois de um dia todo de trabalho.

"Você deveria começar a comprar seus próprios cigarros." Kiev Rawblood respondeu monotonamente, a expressão entediada de quem era mais do que acostumado a ver o amigo roubando tabaco de si e fazendo comentários impertinentes a cada oportunidade que tinha. Se fosse honesto consigo mesmo, Kiev não se lembrava de já ter visto Ares comprar um único rolo de seda na vida, que dirá um pacote de tabaco. E depois tinham a audácia de dizer que ele não era paciente com as pessoas.

"E você poderia começar a ser mais bem-humorado, mas nenhuma dessas duas coisas vai acontecer, então—" Ares deu de ombros, soprando a própria fumaça em seguida enquanto devolvia o cigarro para Kiev, que o tomou entre os dedos e voltou a tragá-lo. "De qualquer forma, eu prefiro fumar quando divido meu câncer com alguém."

A regra era essa, entende? O amigo não vinha e simplesmente roubava seu cigarro e saía andando, não; ele vinha, roubava seu cigarro, o tragava e devolvia para que Kiev desse mais um trago antes de passá-lo de volta a Ares e isso aconteceria até que não houvesse mais nada para fumar. Kiev reclamava, mas não fazia nada efetivo para impedir, então quem realmente se importava?

"Cada dia eu tenho mais certeza de que tudo que você quer é dividir saliva comigo." Kiev retrucou, prendendo o cigarro entre os lábios distraidamente enquanto via o sorriso ladino de Ares se alargar, tornando-se quase afiado.

Ares Gutierrez era provavelmente o homem de rosto mais bonito daquela ilha. Seus traços eram simétricos e delicados, com uma pele gentilmente lambida pelo sol, maçãs do rosto altas, lábios rosados e bem desenhados, com sardas espalhadas gentilmente apenas pela ponte de seu nariz e sobrancelhas marcadas, que deixavam o verde de seus olhos de gato ainda mais marcados e intensos. Ele seria perfeito... Talvez não de uma maneira máscula, mas de uma maneira angelical e poética, se não fosse pela cicatriz cruel e esbranquiçada do lado direito de seu rosto, que tomava boa parte de sua bochecha, poupava seu olho por muito pouco, mas cortava sua sobrancelha de maneira quase cirúrgica, para depois terminar quase tocando seus lábios.

Ele a tinha há anos e Kiev estava lá quando foi causada. Sabia o quanto havia doído. Se lembrava do sangue e da pele sempre confortavelmente amorenada se tornando cada vez mais branca, como papel, enquanto ele sangrava em seu colo. Achou que perderia seu melhor amigo naquele dia. Teve certeza de que o perderia e hoje era tremendamente grato por isso não ter acontecido.

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