Roupas amarrotadas pelo vento ressaltavam uma figura robusta, sendo iluminado pela luz da lua. Tinha pálpebras caídas e ressecadas, que contemplavam o lago, a sua frente, sua memória frágil, era permissiva a erros e suas antigas experiências vinham de forma desavisada, principalmente como lampejos.
Um riacho verde, peixes pequenos e três meninas brincando entre as águas. Tinha saudades da paz corriqueira do riacho, da impetuosidade da juventude.
Lembrava dos peixes, movendo-se com sagacidade pelas águas esmeraldas, cobertas de um musgo verde e lustroso. Escapavam desesperados dia após dia, exalando a vitalidade digna deste local. Certa vez, um inimigo era uma ave, veloz e precisa, mas que poderia ser evitada. Outrora, seus inimigos foram alguns cães do mato, ágeis e ótimos nadadores. Mesmo passando por tantas e tantas lutas ferozes, os peixes e o lago conseguiram sobreviver, mesmo nos momentos mais desesperadores, nunca desistiram.
Quão efêmera é a felicidade, demanda todo nosso ânimo para atingi-lá e foge de nós como os peixes no riacho.
Vieram a perder essa luta um dia, mas não pelas mãos de seus predadores, não se permitiram.
Grandes canos de metal enferrujados despejavam toda sua imundice no pequeno riacho. O odor pungente corrompia e fincava-se ao menor contato.
O pequeno riacho estava sendo usado para aliviar os excessos dos homens, seu próprio excesso.
Com a lua crescente, o barulho dos insetos ecoava no vazio da noite. Somente mendigos, vagabundos e bêbados perambulavam por estas bandas. Contudo, ultimamente até eles a abandonaram.
Era um lago habitado por demônios, ou assim o quiseram fazer.
O homem não se adequaria em nenhum desses tipos. Suas roupas amarrotadas não seriam o suficiente para ser tratado como ralé ou vagabundo, e sua mente sempre permanecera sóbria. Para a sua infelicidade.
Com movimentos delicados, ergueu-se do banco e caminhou até a beirada do riacho. Encarou os canos negros do esgoto, enquanto ao fundo, observou todo o panorama. A vegetação verde e exuberante demonstrava sua resistência final. Ao horizonte, as luzes iluminavam toda a cidade, sobrepujando o fraco brilho das estrelas.
Passeou com seus olhos entre as constelações, estas, ele deu um cuidado especial. Contou uma a uma, brindando todo o respeito a qual mereciam. Todas as quais aprendera quando criança. Era grato a elas, por sempre estarem ali, sobretudo em seus momentos mais desesperadores.
Sua mente estava em paz, apenas os movimentos circulares no coldre em seu peito o lembrava sobre o que estava fazendo ali, repetia os mesmos movimentos de sempre, com familiaridade. Entretanto, ao arrochar seu aperto no coldre, sentiu seu peito queimar como brasa, sua respiração se tornou ofegante e seus movimentos erráticos.
Mesmo diante de tal situação, o homem põe-se de joelho ao chão e não se desespera fez de tudo para se acalmar. Sua mente girava enquanto tentava descobrir o que poderia fazer para buscar ajuda, mas subitamente parou.
Lembrou-se do porquê viera até aqui, o motivo de ter trazido velhas dores à tona, sentia-se em paz. Em seu pleno momento de aceitação, ele enxergou um brilho incandescente no mar de sujeira. Uma belíssima porta reluzente, com pinturas grotescas e inexplicáveis. O homem questionou seus sentidos, provavelmente já estava alucinando em seus momentos derradeiros, enquanto isso, seus instintos primordiais urgiam para ele nadar até a porta.
Em uma tentativa infrutífera de se controlar, seu corpo cedeu aos impulsos novamente. Ao se erguer com o resquício de suas forças, o homem acaba caindo e rolando na direção do riacho.
Sentiu seu corpo sendo engolfado pelas águas, a imundice tocando a sua pele, a sua sujeira retornando aonde deveria estar.
A luz tornava-se mais forte, incandescente. Por fim, a força que restava em seu corpo o abandonou, sua consciência oscilava cada vez mais, o ritmo das suas braçadas diminuíam, deixando o corpo ser levado pela correnteza. Sentiu o braço tocar em algo, até o último momento de consciência, tentara chegar até a porta.⬷⤐
Um odor pungente exalava das vestes do homem, forte o suficiente para o despertar. Seu corpo estava dormente e seus membros tinham espasmos. Virando-se para cima ele ofegou, como se o ar que estivesse em seus pulmões pudessem ser roubado a qualquer momento. Não demorou para começar a tossir água e vomitar, expulsando todas aquelas impurezas de seu corpo. Sua mente e estômago estavam mais leves, contudo, estava fraco.
Passou alguns minutos se recuperando, até sentar-se sobre uma tabuleta de pedra. Sua mente ainda rodopiava, até conseguir enxergar de forma distorcida belos e lívidos raios solares.
Indagações passavam por sua mente, mas foram sendo descartadas uma a uma. Olhou ao seu redor e não encontrou equipe de resgate, riacho e muito menos acreditava que um local tão exótico e paradisíaco seria seu pós-vida, não acreditava ser digno de algo tão belo.
Pedras de mármore esbranquiçadas cobriam todo um desfiladeiro, com uma escada entalhada desde sua base. Mesmo sofrendo as adversidades do tempo, sua beleza arquitetônica se manteve viva. Tão estonteante quanto a arquitetura a sua frente era a mata, densamente coberta de árvores e trepadeiras da grossura de um homem adulto. Barulhos de cigarras, insetos e pássaros eram altos, criando uma sinfonia carregada de vitalidade.
Perdido na bela paisagem a sua frente, o velho sai de seu estupor ao escutar uma discussão vinda das outras pessoas ali. Uma jovem mulher segurava seu filho nos braços, enquanto chorava. Seguido pela mãe, vários outros homens e mulheres começaram a entrar em desespero, alguns procuravam em seus pertences aparelhos eletrônicos, buscando sinal ou alguma conexão, mas as tentativas fracassam e o desespero se intensifica. O velho até tenta verificar seu celular, mas o aparelho nem ao menos ligava, estava encharcado pela água.
"Não devia ter comprado o modelo econômico..."
Um grupo de mais de 100 homens e mulheres estavam espalhados em uma clareira na floresta, todos se entreolhavam em dúvida. Sentindo a tensão crescente, alguns tentaram dialogar entre si. Sem sucesso. Suas vestimentas, trejeitos e linguagem eram distintas, estranhas.
Olhos brilhavam com desconfiança, quando imaginaram o pior acontecendo a qualquer momento. Distante, um homem ergue-se diante de todos os outros.
— Meu nome é Edward Leroy — Disse em uma voz profunda — Sou capitão do exército francês e trabalho em missões de paz pela ONU. Peço sua calma nesse momento difícil. Nossa vida não corre perigo. O desespero e a desconfiança são os verdadeiros inimigos durante emergências.
Edward tinha seu corpo coberto por um traje militar, apertado o suficiente para fazer seus músculos dos braços saltarem algumas veias. Tinha uma pele negra lustrosa, era uma cabeça maior do que os seus pares e estava armado com um rifle. O mais interessante era seu semblante, não tinha um padrão agressivo e imponente de um militar, olhava para os outros com calma. Poderia ter chamado atenção de outra forma, ou imposto sua vontade, contudo, pediu a cooperação respeitosamente, mesmo em um momento de histeria.
É preciso mais que coragem para intervir em uma situação como esta. Pouquíssimos homens são capazes o suficiente para isto e ainda mais raros são aqueles que não utilizam da violência e uma posição superior para impor sua vontade aos outros.
Edward repetiu a mesma frase quatro vezes, da primeira vez falou em inglês, depois repetiu em espanhol, francês e por último em mandarim. Sua presença fez os estranhos se aproximarem, dessa vez, tentando encontrar conterrâneos e pessoas que falassem a mesma língua.
Edward usava uma linguagem simples, sem sotaques e polida. Ele explicou estarem atualmente em uma região desconhecida, graças a seu trabalho na ONU, possuía um celular vinculado com satélites, tendo um sinal bom o suficiente para funcionar até mesmo em ilhas inóspitas.
Edward começou a narrar os acontecimentos antes de sua chegada e ao comentar sobre uma porta brilhante, conseguiu encontrar um ponto em comum entre todos ali. O velho homem, endireitou-se ao ouvir as experiências de Edward.
A situação de ambos era semelhante. Edward estava efetuando uma ronda, quando foi sugado pela porta. Não teve outra reação além de segurar sua arma com força.
Vários outros exclamaram ao ouvir sobre a porta, alegaram ter passado pelo mesmo. Todos estavam realizando ações comuns de seu cotidiano, quando entraram em contato com a porta, transportados sem nem ao menos ter reação. Nenhum deles teria aberto a porta, foram levados a força.
Recebendo as notícias de Edward, não demorou para um clima de ansiedade se instaurar novamente, as pessoas estavam sem esperanças de conseguir sair do local. Quem os viria buscar até aqui, quando nem mesmo eles poderiam dizer como chegaram ou onde estavam.
Todos mantiveram o silêncio enquanto dirigiam seus olhares para a única figura de autoridade do local. Eram olhares famintos por soluções.
— Devemos explorar as ruínas! Ao chegar a um local mais elevado, poderemos obter sinal. Além disso, termos uma visão privilegiada da região é de extrema importância para decidir como progrediremos.
Enquanto repetia a mensagem em idiomas diferentes, as pessoas ao redor começavam a analisar as ruínas ao lado da floresta. Não gostavam de estarem perdidos, contudo, ter de explorar uma terra desconhecida os deixaram apreensivos.
Logo, vozes dissidentes vieram de todos os cantos, com uma sobrepujando as outras.
— Não acho seguro irmos pelas ruínas! — Exclamou um homem ao lado do capitão — Devemos primeiramente irmos pela floresta, ter sinais de civilização humana não significa necessariamente segurança. Se tentarmos seguir em direção ao norte, poderemos ter uma chance de encontrar o mar. A partir daí, nos localizarmos vai se tornar mais fácil, poderíamos até mesmo encontrarmos barcos ou navios pesqueiros.
O homem era um jovem loiro, baixo e musculoso. Ele usava um inglês arrastado, mas seu espanhol era de fácil compreensão.
— Meu nome é Lorenzo, sou um pescador e trabalhei minha vida toda sobre um barco. Já visitei vários mares com meu pai, partindo do chile, navegamos por toda a América do Sul e central. Acreditem em mim, se formos para o mar, poderei ter uma localização melhor de onde estamos.
Seu avanço foi uma clara afronta a Edward, que se manteve calado durante toda a fala do sujeito. Todos mantiveram silencio após a declaração de Lorenzo, esperaram o argumento do capitão. Distante da expectativa de todos, não ouve conflito ou pólvora.
Edward apontou para Lorenzo e disse:
— Estarei indo em direção ao norte também, subirei as ladeiras e buscarei um ponto em comum, para vislumbrar um possível oceano nos circundando. Caso encontre algo — Ele remexe no seu bolso, retirando seu celular — Mandem mensagens por Bluetooth, testei a poucos momentos atrás e demonstra ainda ser útil, infelizmente a distância é curta e não cobre uma área tão grande assim. Caso esteja fora da área, mandem sinais de fumaça, um mensageiro ou algo do tipo, mas cuidado para não chamarem muita atenção.
Antes mesmo de Lorenzo responder, Edward diz para todos presentes — Estarei indo em direção as ruínas. Aqueles interessados em buscar refúgio em outro local, venham comigo. Prometo tratar com justiça e não os abandonar.
Edward sobe as escadas lentamente, sem olhar para trás. Um súbito pânico percorre todos, alguns levantaram rápido enquanto outros já estavam preparados desde o princípio, uma onda com mais de 40 pessoas seguiu o capitão escadaria acima.
Com a partida de Edward e seu grupo, o restante dos estranhos olharam para Lorenzo.
— Venham comigo. Chegaremos ao litoral ainda hoje, não se preocupem. Buscaremos ajuda e voltaremos para casa.
A oratória de Lorenzo não era boa, entretanto, exalava confiança. Conseguiu montar um grupo de 23 homens adultos e fortes, negou a participação de mulheres e crianças. Após se organizar, o grupo entrou na floresta sem demora.
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O conto da trindade
AventuraUm senhor triste e sozinho, uma mãe solteira e desiludida com a vida, um professor problemático e alcoólatra. Cem pessoas foram raptadas por uma porta dourada, cem vidas distintas com seus medos e anseios obrigados a realizar a mesma tarefa: sobrevi...