Em seus olhos não se via o sufoco que o ar quente causava, um vapor que impregnava dos pés a cabeça todos que de alguma forma passavam pelas calçadas.
Não, ele tinha um objeto de desejo, um lugar até onde ir. E seu olhar refletia isso, pois era tudo o que o ambiente não queria que ele fosse, ou seja, vívido, carinhoso, esperançoso e límpido.
Em seus membros anteriores, uma pata era animalesca e a outra mecânica, e devidamente andavam em consonância. O Gato olhava para seu futuro, para o chamado ''Beco de Gaius''. Claro que ele não o conhecia por esse nome, mas sim, como o lar habitável de um romance iniciado tempos atrás, e que merecia uma continuação.
Lambendo a pata animal, de súbito lembrou o porquê de ter parado por um instante. Era por ter despistado seus perseguidores em uma esquina próxima a um açougue. Mas não demoraria muito, dado a ferocidade com que eles corriam atrás de sua presa, chegarem até ele por uma vez mais. E, de fato, chegaram.
A pata mecânica impulsionou o restou daquele corpo pequenino a se mexer, e rápida e precisamente o membro se movimentou com um instinto de sobrevivência aguçado. Já era de costume para o felino que essa parte do corpo comandasse o resto, e do começo incomodado com o tempo partira a ver a vantagem que ele obtinha ao mantê-la por perto, optando por, de quando em quando, alinhar interesses em comum com ela. O único problema era manter o ritmo, sendo que a cada mês o peso da idade o alcançava mais.
Atrás, vinham seus detratores, um com um cutelo, pego junto ao açougueiro, e outro com um ímã, para tentar e fracassar novamente em pegar o membro mecânico do Gato. No entanto, ao ver o Beco de Gaius chegando cada vez mais próximo, se desprende do chão, dando um salto e caindo na gárgula primordial, uma das três localizadas ao longo da cidade, o que seria um perigo, mas que não se fez dada a hora do pulo; ainda não era 12h, portanto a gárgula não soltou seu vapor inibidor.
O cutelo passou rasante no felino, que desviou por pouquíssimo, apenas para ver o retorno do objeto, sendo puxado pelo ímã. O Gato, então, fitou o ponto mais alto da cidade, um prédio gótico abandonado e de dimensões que se assemelhavam a uma catedral depois de dois bombardeios. De pé, mas em pedaços, e com o diferencial de que a segunda gárgula lá estava. A pata mecânica rapidamente lhe confere vantagem em alcançar mais depressa o topo. E do tempo do cutelo retornar até o gato ir de encontro à gárgula, o relógio bate 12h. O suficiente para o cutelo passar em frente a gárgula no momento em que o vapor saia e para que o Gato se jogasse, despencando das alturas.
Lá mais embaixo, enquanto caia, ele vira cutelo se estilhaçar. O ímã do rapaz tentava direcionar o gato até seus braços, apenas para chamar mais os estilhaços do que a pata mecânica para si. Em um reflexo tenta se esconder tardiamente das lascas de cutelo, que o ferem, e o derrubam em uma poça. O outro homem, então, fica de posse do artefato ímã, aproveitando a proximidade do gato, que permanecia parado. Ele olha para o cidadão caído por um instante e volta-se para o gato, com olhar de preocupação, e com um tremeluzir nas mãos, para dizer o seguinte:
- Você sabe o que queremos, e para que vamos usar. Facilite, não vai te fazer falta. - disse ao apontar para a pata. - Hoje somos nós, amanhã podem ser pessoas muito mais cruéis. Veja, somos pobres e sem nada a contribuir, cairemos logo, com sonhos inacabados... Que continuemos em um sonho melhor, por favor!
Não havia muito o que ser dito sobre aquilo, pois a verdade se fazia em palavras naquele momento.
- Eu não roubei o ímã, se é o que está pensando, foi dado a nós. Nas catacumbas de Gaius. Você pode ser um Gato, mas já ouviu o nome. Eles deram muitos presentes aos animais, já se questionou o por quê? Para saber se sobreviveriam. O presente foi dado, e agora querem de volta. Essa foi a missão, mas não pense que quero dar a eles, quero que fique comigo. Por favor, façamos um acordo.
O gato, desejava sair da fervura e ir ao aconchego. Preparava suas garras para um ataque feroz e preciso.
- Venha. - disse o homem aspiração em querer que o ímã lhe trouxesse o gato para junto. Mas o ímã nada fez. - Como? Você mudou o revestimento da pata? Voltou a Gaius? Quem você encontrou lá? E em que parte?
O Gato não quis lhe dar uma resposta, pois percebeu que aquele indivíduo era obcecado, e não por uma causa boa, como a dele. Se fosse merecedor, Gaius teria lhe dado o que buscava, e não o teria testado com um objeto que servia mais para ferir os outros do que para conferir paz.
O Gato continuou sua caminhada, sem olhar para trás. No desespero, o homem avançou, apenas para que o Gato não o atacasse, mas desviasse, causando com que o rapaz se desequilibrasse e caísse de cara na calçada, enquanto o ímã, tão caro ao homem, lhe pesasse o peito ao dar piruetas no ar e atingi-lo em cheio.
O gato, então, passou pela última gárgula, vendo que seu vapor lancinante ainda está ativo, pois essa em particular, nunca cessa sua poluição. A última gárgula simbolizava a entrada para o ''Beco de Gaius'' onde o gato encontraria quem procurava, e deitaria ao seu lado. Gaius, então, mostrou os pontos longínquos das galáxias ao baixar suas luzes, escondendo seu esplendor para receber o Gato. Nada se via a não ser o breu em todas as direções.
A busca do Gato teve fim ao se deparar com uma caveira pequenina e desgastada, que brilhou ao passo que o Gato se embrenhava na escuridão. Ao se reconfortar e deitar-se, uma luz roxa sai de dentro da pata mecânica, indo de encontro à caveira, que em instantes começa a reestruturar suas formas, criando massa, textura de pele, pelagem marrom e olhos carinhosos e esperançosos, se transformando em uma Gata adulta. A Gata, já o conhecendo, imita a pose do outro Gato. Os dois se encaram, e na encarada ele reflete, pois outrora queria ler mais da linguagem corporal da felina, queria afagos e caminhadas em dupla, mas hoje só queria olhar para ela com a intensidade e carinho que lhe eram dados por sua companheira que há muito havia virado poeira cósmica.
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O Gato Reflexivo
Cerita PendekUm gato corre. Um gato corre para chegar até seu destino. Um gato corre para chegar até seu destino enquanto é perseguido por pessoas que querem seu braço mecânico. Um gato corre, até...