maré viva.

120 20 24
                                    

Deus estava furioso.

A extensão do céu escura e cinzenta denunciava a tormenta do embate das entidades acima. Os raios riscavam o espaço, iluminando o cemitério solitário; os anjos de mármore eram uma visão lúgubre diante do clarão dos relâmpagos e os ventos rugiam coléricos balançando as copas das árvores. A chuva desabava sem piedade sobre o corpo curvado de um homem, ajoelhado na terra molhada, sem se importar com a lama manchando suas roupas ou a guerra divina ocorrendo ao seu redor.

Feito um fenômeno da natureza se prostrava diante do caos como se ali pertencesse. Tinha as mãos unidas em frente ao corpo, suas juntas brancas pela força, rogando para o firmamento, furiosamente preso na sua própria tempestade. As gotas molhavam suas pálpebras fechadas se mesclando às lágrimas que rolavam pelo seu rosto. Esse homem gritava. Rugia junto com o assovio do ar, a plenos pulmões, implorando, lamentando, afrontando um Deus que ele sequer acreditava existir pelo nome cravado no túmulo perante si.

Sua voz pertencia à gravura. Preenchia o quadro da batalha. Seu ser quebrado era um ponto obscurecido em meio ao cosmo desorganizado. Mesmo assim, um único nome se repetia por entre os lábios rachados e vermelhos, uma maldição e reza, um chamado delirante por presença, para que aquele nome se personificasse diante si e o tirasse do abismo sem fim, o salvasse, o ancorasse, mas ele acabou rouco, sem forças, e ninguém apareceu. O universo não o escutou. Num último sussurro desesperado, abriu os olhos, fitou o céu refletindo o caos instaurado em seu interior e soprou por entre os dentes:

— Jeon Jungkook.

O fio de voz que lhe restava morreu, foi um apelo murmurado para o universo, as sílabas flutuando através da sua boca em reverência e familiaridade, sua íris transparecia a alma despedaçada dentro, sua cabeça baixou em derrota e ele encarou a lápide na sua frente com uma expressão pesarosa que descrevia angústia.

Jeon Jungkook

01/09/1997 – 15/08/2019

Vocês vão me encontrar, em outra dimensão, onde não existe dor, nem se declara guerra, onde estamos em paz

Naquele dia fazia uma semana que ele partiu e Park Jimin tinha saído da cama apenas para ir ao cemitério num dia chuvoso e brigar com Deus. Sua mãe tinha se assustado e ficado preocupada com sua saída repentina sem nem levar um guarda-chuva, mas isso não impediu sua frenesia. Havia saído correndo desgovernado em uma epifania e não parou até chegar em frente à sepultura determinada.

Agora, ele estava ali, ajoelhado entre os mortos com as mãos cravadas na terra e o olhar denunciando o espírito de um homem em luto diante do túmulo de seu amado. Não pensou direito ao ir até aquele lugar, não pensava direito desde o ocorrido. Não sabia se esperava uma redenção ou punição. Um sinal ou uma guerra. Porém sabia que queria uma resposta.

Uma que não teria das folhas chacoalhando, nem dos sussurros da ventania ou dos trovões sacudindo seu corpo.

Ele se sentia sozinho, perdido e terrivelmente abandonado. Furioso com Deus e consigo mesmo. E mesmo que quisesse negar sentia a pontada de fúria dirigida à Jungkook também. Aquele tolo, ingênuo e insuportavelmente doce homem. Tinha apenas 22 anos, mas era pessoa mais bondosa que Jimin já conhecera em toda a sua vida. Todo final de semana ou visitava o asilo de idosos para fazer companhia aos velhinhos, ou ia ao abrigo dos sem tetos distribuir marmitas. Ele era simples assim, sempre preferia ver o bem nas pessoas. Se doava de corpo e alma para tudo que se propunha a fazer. Era feito de amor. Mesmo que Jimin não quisesse quebrar o encanto, era necessário sempre alertá-lo dos perigos, que nem todas as pessoas eram boas ou seriam gentis com ele apenas porque ele as tratava bem.

maré viva [ jjk + pjm ]Onde histórias criam vida. Descubra agora