BOA TARDE, QUERIDA ELZA

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Foi num onze de novembro de 1669. Uma família britânica em terras francesas.

Os ares dos arredores da pobre cidadezinha em um lugar nenhum sem nome, tomado pelas friezas dos tempos que nos castigam, cheiravam um aroma difícil de definir. Um aroma de frio, calafrio, dias em calafrios, um aroma de corrosão, sentindo o sangue das ventas fluindo pelas nossas narinas como uma navalha passando sua lâmina por elas, uma coriza que ataca gelada e nos queima, nos faz derramar uma lágrima sólida, trêmula, uma lágrima que escorre por um rosto sugado pelo vazio do estômago, dias, dias e mais dias de vazio do estômago. Você passa a língua para sentir o salgado das próprias lágrimas, uma língua quase branca de frio, tremendo como um verme carnudo saindo de sua garganta, movendo seus rachados lábios azuis. Não é suficiente, não preenche seu âmago, só mais um suar de desesperança implorando pelo fim da dor. Os braços grudando nos ossos, as pernas igualmente frágeis, dobradas em frente à uma mesa farta, sortuda, dobradas e queimando naquele chão gelado podre como cascas desgastadas de árvores distantes de épocas mais fartas. Belos pés, imundos, mal conseguem se mexer direito, mal a aguentam levantada, suas mãos paradas, escondidas entre as pernas, através da linha do vestido, pedindo aquecimento, o mínimo de aquecimento para seu corpo encurvado e caído em dores difíceis de se localizar. Sua barriga se espremendo ao ponto de virar uma tábua encurvada que subia ao peito em costelas que surgiam através das costas do vestido menos diáfano do mundo, escondidas por um cobertor de pele de vaca, o único cobertor que sobrou depois que sua mãe não conseguiu defender o lar de ladrões que roubaram seu sustento e roubaram a honra dela ali mesmo onde estava sentada, se alimentando, sob um teto desmoronando, sacudindo sob aqueles ventos fortes. Tremia, rangia os dentes e quase chorava, imaginando aquele dia, ela só escutava os gritos e a madeira batendo sobre sua cabeça, enquanto prostrada e escondida esperava aquele terror acabar, num silêncio bizarro que parecia nunca, nunca acabar.
Ela ouviu uma ordem, seus ouvidos não estavam funcionando direito. Alguma coisa sobre afastar as mãos daquela região, era indecente. E mandou ela comer de uma vez os farelos de trigo antes que congelassem, só não conseguia identificar se foi sua mãe quem disse, ou seu pai quem disse. Estavam tão decrépitos quanto ela, pareciam abalados, forçando um senso constante de falta de abalo, mas no fim, só estavam mais enrugados, quase esqueléticos, olhos vermelhos, os dentes nunca aparecem, seus rostos pálidos e feridos, nem respiravam direito, pareciam respirar pela força da dor, suas mãos se moviam lentas e quase se desprendendo de seus braços frágeis, flácidos como um pau envolto do mais repugnado e desgasto pano. Roupas tão velhas quanto as lendas são ousadas afora. Roupas próximas à invólucros de cadáveres, não peças de sobrevivência e pudor. Estavam todos sofrendo, sofrendo como uma família em um jantar à quatro... ou à três. Ela se recusava à olhar para o lado da mesa onde repousava a jovem amada "Deane", ela nem havia completado um ano ainda, não tinha culpa desses tempos repulsivos que os assolavam como nunca foram assolados há três séculos. Sempre que olhava, ela acabava vendo sangue em seu vestido, sangue em sua boca, e seus pais sangrando como loucos. Às vezes chorava quando pensava em chamar seu amigo de infância cínico, o pequeno pastor perto da carruagem, o pequeno "Mounsier Candie", tinha um lindo pelo dourado com manchas escuras apesar de quase nunca estar limpo. Nem latia alto, ela não entendia porquê aquilo aconteceu, porquê eles fizeram isso, porquê a obrigaram à fazer aquilo, porquê não podia chorar enquanto eles o assavam como se fosse um frango qualquer, como se o Candie não fosse importante, como se fossem melhores, como se fossem animais selvagens. Ficavam sussurrando algo sobre consumir mais carne de sua gente, sussurravam como se ela não pudesse ouvir, falavam sobre um boêmio da rua Morgue ao leste da cidade, perto de uma taverna agora vazia há semanas, todos estavam se matando com bebidas para não morrerem de fome, não sofrerem com a fome que os matavam, os consumiam, a fome que se alimentava deles. Falavam como se não pudesse opinar por ter tido seu cabelo cortado curto ao ponto de pouco abanar ao vento, para ofertar em troca de pão de ótima qualidade, seus lindos cabelos longos pretos como a noite não valiam toda aquela dor, não podiam crer em sua filha, com aquele cabelo de prostituta, aquele cabelo... de homem. Mesmo em meio à fome, ela era o que sempre foi, estando com a língua morta em desejo faminto ou não.

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