A desdita cidade dos Orcs

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                    I

   Ainda lembro do aroma daquela fumaça das brasas no fogão a lenha naquela manhã, ela varria o chão avermelhado e impregnava meu velho colchão de palha com os cheiros fortes da carne de búfalo assada e da sopa de feijão. Ouvia minha mãe falando com alguém, o carpinteiro, ele ainda não tinha terminado umas reformas e precisava da ajuda dela pra buscar material. Nem tive tempo de falar com ela naquela manhã, quando me dei conta tava devorando sozinho os pães na mesa, mergulhando eles na sopa e arrancando pedaços de carne com os dentes. Odiava tudo aquilo e queria terminar o mais rápido que podia. Quando acabei só saí do jeito que estava e fui brincar na rua. Sabe, meu povo tem essa fama toda de sermos bárbaros que só sabem roubar e destruir, mas não é verdade, não é. A gente briga sim, bastante, como qualquer outro ser idiota que já pisou os pés nessa terra. Naquele dia não fui diferente, já nem sei o porquê pra falar a verdade, só sei que fiquei de mal com uns amigos e discutimos feio, quebrei umas bilocas no chão e voltei pra casa com a cara emburrada. Mãe já tinha chegado quando voltei. Assim que vi ela enxuguei as lágrimas e fui correndo contar meus feitos, esbanjar aquela coragem e mentir meu heroísmo sobre como enfrentei meus colegas. "Eles estavam roubando de novo, aí eu... Mãe, ôoo mãe!", eu dizia tentando chamar a atenção dela. Mas só recebia um "Depois me conta, tô ocupada", eu era jovem de mais pra entender que o mundo não gira a ao meu redor, mesmo que fosse o meu mundo. Bati os pés e saí correndo pra deus sabe onde, só queria me meter em qualquer buraco e ficar sozinho.

                   II

   Quando me dei conta já estava bem longe de casa, tanto que na minha frente se erguia o grande portão do norte. Minha mãe sempre me dizia pra ficar longe dos portões, não era raro algum imbecil tacar pedras e atingir um pobre diabo zanzando descuidado ali perto. As pessoas vinham de longe pra visitar a "capital dos orcs", éramos como atrações de circo, piores que isso, na verdade... Eu já estava pra correr com o cu na mão quando uma sombra ofuscada pelo sol caiu na minha direção, e pelas presas do meu velho! Eu agradeço até hoje por estar vestindo um calção marrom!! Por que não sei se foi a lama do piso ou outra coisa, mas quando me levantei da queda estava melado. Vocês não fazem ideia do alívio que foi perceber que ninguém ouviu meu grito e tão pouco presenciou o tombo! Mas isso é besteira, o que me chamou atenção mesmo foi o pobre canário espatifado sob meus pés, o infeliz veio quebrando todos os galhos da árvore pela qual ele passou e ficou tão ferrado que fazia nojo até pra urubu. E foi quando reparei na árvore que vi um amontoado de aranhas umas sobre as outras, não se digladiando, mas cooperando pra encasular uma quantidade surreal de moscas, lacraias e tatuzinhos. Eu sei, e sei que vocês também sabem, era verão naquela época, é normal ter comida de sobra pros sapos e aranhas, mas não daquele jeito. Se eu não soubesse o que uma gota do veneno daquelas coisas podia fazer, teria me aproximado da árvore na hora e subido nela pra ver de perto, na verdade eu estava pra fazer isso no instante que ouvi outro baque. Mais um pássaro cadente pintou o chão de vermelho, mais outro e mais outro. Os corpos jaziam mudos nas ruas e das paredes tocadas pelo sol da manhã centopeias emergiam como mágica. Era como se uma trilha se formasse, me chamando, sussurrando meu nome, convocando a minha alma pra uma aventura. E eu, como criança buliçosa que era, fui com um sorriso dentado estampado na cara, metendo nos bolsos os maiores insetos que encontrei no caminho, no mínimo ia ter rinha de tanajura naquela tarde. Ou era assim que eu pensava...


                   III

   A caminhada seguindo a trilha de insetos até chegar no portão oeste foi longa, o relógio da praça já nem fazia sombra. Naquela hora tudo o que me interessava era saber onde isso ia dar e, seja por milagre ou negligência dos guardas, a porta pras escadarias que davam no topo da muralha estava aberta. Eu achava que era coisa do destino e, destinado ou não, subi sem olhar pra trás. Sabe, é sempre estranho passar pelos estreitos corredores de uma muralha, elas parecem tão sólidas e intransponíveis do lado de fora, mas por dentro vocês consegue ver o sol cortando o ar pelas frestas entre as pedras, gastas pelo acaso que só o tempo pode proporcionar, denunciando cada partícula de poeira e pelos de rato. Foi numa dessas frestas por onde eu vi aquilo que traria a meia-noite da vida de muitos, uma nuvem escura, camuflada como uma inofensiva e discreta linha negra no horizonte. Estava absorto tentando identificar o que poderia ser até que o barulho de um berrante me acordou. Sabendo exatamente o significado daquele som, subi ligeiro as escadas esbarrando nos guardas, que só não me seguraram pelos calcanhares por estarem confusos de mais pra reagirem. E assim que cheguei na parte de cima me apoiei no parapeito cerrando os olhos na direção do Monte Cristal. Sem dúvidas era ele, meu velho finalmente voltava daquela jornada à Paus dos Mangues, hoje as Terras de Ronan. Mas alegria de pobre dura pouco e o meu sorriso se foi tão logo senti o aço frio da malha de um soldado na minha nuca. Eu não devia estar lá e sabia muito bem disso, tenho as marcas daquele beliscão na minha orelha até hoje.
 

  Foi vergonhoso ser arrastado nas ruas por aquele soldado até o norte da cidade, ele puxava minha orelha como se quisesse arrancá-la. E eu não ajudava em nada a diminuir o espetáculo, me debatia e esperneava tentando escapar daquilo, mas findava chamando a atenção da galera que ainda estava em casa. Todo mundo ria como se o mundo fosse acabar se não o fizessem, até aquela velha ranzinza desgraçada! Só uma vez, durante o sermão, consegui me livrar, jogando uns insetos dentro da armadura do soldado, mas o imbecil aqui tropeçou num pombo morto e caiu que nem merda. Tremia feito vara verde só de imaginar a cara de desgosto do meu pai ao atravessar os portões e ver seu único filho sendo rebocado como um vagabundo bem na frente dele, mal segurava o choro enquanto esperava na entrada. Mas o que eu vi foi mais amedrontador que qualquer reação que eu pude imaginar... Quem entrou não era meu pai, não era o grande Mitfühlend e tampouco Thokk, o Decapitador, não... Aquela expressão de medo profundo nos olhos, aquela voz rouca e trêmula, a maneira como ele desceu do cavalo gritando pra todo mundo se preparar ou ir embora, enquanto vinha me abraçar com o barulho ensurdecedor do coração fazendo as placas da armadura vibrarem nos meus ouvidos. Quem entrou em Chão-Parado era um homem amedrontado e confuso, que já não sabia o seu lugar no mundo. Tudo aquilo derramava um medo irracional em mim e, se ver por debaixo dos braços do meu pai aqueles soldados mutilados e devorados pela violência da jornada não me ajudou em nada, muito pior foram os estrondos que vieram mais tarde naquele dia quando cuidávamos das feridas dos guerreiros, o som dos portões sul e oeste sendo atacados.


                    IV

   Era tudo um caos, numa hora eu estava carregando ataduras ensanguentadas, na outra eu era arremessado para o pescoço de um cavalo. "Fuja, Flick!" foram as últimas palavras que ouvi dele, e elas nem eram pra mim, mas sim para o guerreiro que conduziu sem receio o animal. Desviando das pessoas em pânico e restos de barracas no caminho em direção ao portão leste. A cada metro ganho, a minha terra era invadida por seres abissais e profanos, vindos do próprio inferno. A cada instante aquela figura paterna ficava mais distante, dando lugar ao demônio tão maldito que conheci apenas pela boca dos outros, o Decapitador Thokk. A lâmina carmesim, da qual meu velho tanto se orgulhava da beleza, brilhava como uma grande fita que cortava o ar, devorando as bestas famintas por sangue. Era como ver uma pintura surreal se formar diante dos meus olhos, uma gárgula destituída de suas asas cortando sangue que se moldava em garras e tentáculos, sem nunca parar para respirar ou descansar... Destroçando a beleza daquela lâmina e tornando o vermelho sinônimo de horror e morte. Me fazendo recordar todos os cantos épicos e os tornando fúnebres. Me fazendo desejar a morte à ver aquilo perdurar mais um segundo que fosse. E de fato, a morte veio. Um grande cão alado se jogou por cima dos muros e caiu certeiramente na garganta de Thokk, ele mal conseguiu reagir e levantar a lâmina a tempo pra perfurar o peito do monstro, que se debatia em agonia gritando de dor com a maldita voz de uma criança. Aquele grito de agonia o abalou tanto que o fez se perder no olhar de terror do monstro, o cegando pro raio que veio na sua direção. Diante dos meus olhos ele foi pulverizado, ou antes fosse, aquilo foi muito pior, pele e carne voaram em tiras para longe e revelaram seus ossos, tudo o que sobrou foi uma figura esquelética de um guerreiro em sua armadura erguendo sua espada aos céus. Só consigo sentir nojo de mim mesmo por não ter conseguido olhar praquilo um segundo a mais que fosse, sinto nojo por ter escondido meu rosto em lágrimas na pelugem do animal e chorado sangue enquanto negava aquela terrível visão como sendo meu pai.
 

  Em algum momento o cansaço me venceu, acordei dias depois em um quarto estranho. A cama era de pedra e o cheiro do almoço era o de uma sopa insossa. O único rosto conhecido que vi naquele dia fora o de Flick, o recruta que tivera sua primeira e última missão ao lado do meu pai há poucos dias. Ele era tão jovem quanto eu sou agora e, apesar do corpo magro e aparência frágil, o vermelho dos ferimentos pouco cicatrizados se contrastavam com a pele escura no copo todo, ferimentos que não lembro de ter visto dias antes. Ele me encarou por um bom tempo antes de me dar a notícia de que minha mãe havia morrido em combate. Nunca acharam o corpo dela, na verdade nunca acharam o de ninguém, tudo o que sobrou foi uma pilha de ossos. Agora sempre se referem ao assunto como um maldito incidente! Porra! Monstros não saem do inferno sem serem invocados e muito menos atacam orcs miseráveis dentro de muralhas!! Alguém fez isso, alguém tem que ter feito!! Senão, eu vivi todos esses anos pra nada...


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⏰ Última atualização: Jun 24, 2022 ⏰

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