1- O Nascimento de Bianca

5 2 0
                                    

                                                                          Anjo Caliel

Eu estava deitado de costas sobre um estratégico amontoado de nuvens macias e aconchegantes. Era o inicio do amanhecer, e o céu límpido se estendia a minha volta de maneira absoluta. Minhas extensas asas brancas estavam confortavelmente estendidas sobre a superfície aveludada e esbranquiçada das nuvens, com a qual, a plumagem de minhas asas quase se camuflava.
Naquele inicio de manhã em especial, meus olhos estavam voltados para Tinto. Uma cidade que se localizava ao oeste do meridiano de Greenwich, no continente da America do sul, especificamente ao sul das terras brasileiras. Eram meados do mês de julho no calendário humano. E aquela região estava atravessando por um inverno rigoroso. A geada cobria-lhe quase que por completo, suavizando as cores fortes da extensa paisagem natural. Era uma cidade de pouco mais de trezentos mil habitantes. Os quais, naquela manhã, eu observava atenciosamente. O nascer do sol estava esplendido. Iluminando aquela cidade de forma categórica. Suas nuances douradas e cor de rosa, estendiam-se sobre Tinto como um manto aquecido e acolhedor depois de uma noite consideravelmente fria. O aroma vagamente adocicado que exalava daquele lugar era convidativo. Fechei meus olhos lentamente, e me concentrei nas orações humanas que eram feitas logo nas primeiras horas do dia. Com meu pergaminho em mãos, comecei a anotar minuciosamente cada oração feita por aquele povo, exercendo minhas habituais funções de mensageiro, em uma caligrafia dourada e elegante.

"Papai do céu, manda meu anjo da guarda soprar as respostas da prova de história hoje..." (Leandro, 12 anos)

"Anjinho da guarda, me dá um unicórnio colorido..." (Ana, 5 anos)

"Meu anjinho, me guia no bom caminho..." (Fábio, 8 anos)

"Senhor, que os teus anjos protejam os meus filhos de todas as amizades ruins..." (Maria, 35 anos)

"Senhor, envia a cura do meu filho pelas mãos dos teus anjos..." (Roberto, 43 anos)

"Meu anjo da guarda, se você me tirar dessa, eu prometo que nunca mais vou fazer isso de novo..." (Marcos, 19 anos)

"Meu anjinho, faz esse exame dar negativo, se não minha mãe me mata..." (Camila, 17 anos)

"Senhor, preciso de dinheiro..." (Juliano, 34 anos)

Geralmente, nenhum humano em especial capturava a minha atenção a ponto de me fazer ir ao encontro dele de imediato. Mas naquela manhã, uma moça em particular se destacou, ao sussurrar fracamente uma oração peculiar.

Gabriela Reis, era o nome de batismo dela.

"Senhor, eu sei que não sou melhor do que ninguém nesta terra. Mas peço que não ignore a minha oração.
"Talvez eu não seja digna de ser ouvida agora, mas eu suplico que me ouça.
Estou com tanto medo.

Eu não posso morrer agora.
Eu preciso continuar respirando."

Mesmo tomada pelo choro e a angustia, sua oração era determinada. A voz daquela moça me atingiu com solidez. Seu desejo de ser ouvida e atendida naquele momento era intrínseco. E principalmente, era altruísta. Mas ela estava perceptivelmente fraca enquanto orava.

Abri meus olhos vagarosamente, e me virei de bruços sobre a minha tão confortável nuvem, e então olhei para baixo. Logo avistei uma moça de dezenove anos, grávida de trinta e oito semanas, estirada sobre o capô de um carro vermelho e reluzente, que havia se chocado bruscamente contra um poste de concreto. Ela havia se esforçado muito para se virar, e ficar deitada de costas sobre o capô, aliviando a pressão contra o bebê .

Seus longos e espessos cabelos cor de mel espalhavam-se ao redor de sua cabeça. Seu lindo rosto estava cheio de escoriações. Seus grandes olhos castanhos estavam voltados para o céu, encarando o reluzente nascer do sol que a sobrepunha. Lágrimas genuínas lhe escorriam pelos cantos dos olhos, cada vez que ela piscava. Entre as suas pernas havia se formado uma pequena poça de sangue. Infelizmente, se ela não fosse socorrida a tempo, seu bebê não sobreviveria.

Durante a madrugada fria, havia se formado uma fina camada de gelo sobre o asfalto, deixando-o escorregadio. O carro que Gabriela dirigia, um opala comodoro 1979 de cor vermelha, apesar de muito bem conservado, era antigo. E ela não conseguiu evitar que ele deslizasse descontroladamente pela pista, quando ela distraidamente avançou o sinal vermelho, e uma caminhonete se chocou contra a traseira lateral esquerda do opala. Fazendo-a girar e se chocar bruscamente contra aquele poste. Gabriela estava sem cinto de segurança, e foi arremessada pelo pára-brisa diretamente por sobre o capo vermelho e reluzente.

A boca arroxeada da moça tremia de forma involuntária, recitando insistentemente a sua oração quase silenciosa.

"Eu não tenho acreditado em anjos ultimamente.
Mas nesse momento, se existe algum anjo sobrevoando por aí, eu suplico ...mande-o vir aqui, Senhor.
Minha filha vai nascer a qualquer momento...
Ela é o despertar da minha fé.
É a minha oração repetitiva.
É a minha prioridade.
Se o Senhor puder me ouvir, salva ela para mim, por favor, eu imploro".

Aos poucos algumas pessoas iam se aproximando da moça. Mas ninguém se aproximou o suficiente para tocá-la.
-É a filha do seu Francisco da oficina. –Alguém disse reconhecendo a moça. –O nome dela é Gabriela.
-Reconheço o opala vermelho. –Outra pessoa lamentou –É ela mesma.
-Já chamamos uma ambulância! –Um outro homem exclamou enquanto observava Gabriela deitada sobre o capô gélido.

Inclinei-me um pouco mais para a beirada da nuvem para continuar ouvindo a oração da moça.
"Me ajuda á agüentar, até que ela esteja segura."
–Ela sussurrou quase perdendo a consciência.

Observei-a por mais alguns segundos.
Ela não agüentaria mais do que cinco minutos no relógio humano se eu não fosse ao seu encontro imediatamente. Por um breve momento, olhei para ela e senti minhas asas alvas e límpidas se iluminarem, e soube que havia algum propósito sobre aquela mulher.
Então eu mergulhei para o encontro de Gabriela. Senti a brisa fria arranhar delicadamente o meu rosto e bagunçar os meus cabelos, enquanto eu atravessava o ar frio e a densa neblina que se mantinha sobre a cidade . Quando me aproximei de Gabriela, abri minhas asas iluminadas, pairando sobre ela.

Eu pude sentir o esforço extremo que ela estava fazendo para se manter acordada. O desejo forte de manter a bebê viva. Coloquei minhas mãos sobre o peito de Gabriela. Eu a manteria viva, até que aquela criança nascesse.

Gabriela fechou os olhos devagar, e inspirou dentro do casulo das minhas asas ao redor dela. Sentindo o suave e doce aroma da minha presença, ela sorriu o canto dos lábios. E inesperadamente, seus lábios trêmulos se movimentaram mais uma vez, sua voz era quase um sussurro silencioso, mas a ousada determinação de sua oração era exigente e as palavras saiam freneticamente, como se Gabriela já estivesse Ciente do pouco tempo que lhe restava.

"Por favor, cuide da minha filha.
Seja a proteção que a minha filha precisa.
Seja como um pai amoroso.
Como um irmão protetor.
O seu amigo confiável.
O seu conselheiro sábio.
O seu professor experiente.
O seu guarda-costas atento.
O seu médico competente.
Prometa para mim, que vai cuidar dela em meu lugar.
Que vai interferir quando for necessário, independente do que tenha que fazer."

Apesar da audácia, eu podia sentir a humildade, a sinceridade e a angustia em seu coração. Então eu acolhi aquela oração com comprometimento.

-Eu prometo. –Sussurrei docemente para ela, tocando em sua barriga, fazendo-a sentir-se tranqüila naquele momento.

E então uma luz celeste, atravessou a neblina e se lançou sobre nós, gerando uma sensação morna e adocicada em mim e em Gabriela. De repente, envolta do meu pescoço surgiu um longo e fino cordão de prata, que carregava um pingente reluzente e especifico. Um par de asas prateadas, com cerca de dois centímetros de altura e três centímetros de largura.
E naquele momento, eu deixei de ser um simples mensageiro, e fui promovido á anjo da guarda.

Aquele era o símbolo de que eu havia feito uma promessa genuína á uma humana, e nada poderia ser capaz de quebrá-la. Daquele momento em diante, eu estava ligado àquela criança, até o fim dos seus dias. E ela nem se quer havia nascido ainda.

Logo sirenes e luzes vermelhas vieram ao nosso encontro, e a pequena aglomeração de pessoas envolta de Gabriela se afastou.

Eu acompanhei enquanto os paramédicos colocavam Gabriela cuidadosamente sobre uma maca branca, e a levavam apressadamente para dentro de uma ambulância, prestando os primeiros socorros necessários. Eu a acompanhei em todo o momento.
Assim que entramos as pressas pelo corredor do hospital, um homem de quarenta e um anos, surgiu correndo ao nosso lado.
Seu nome era Francisco Reis. Ele era o pai de Gabriela.
Quando ele percebeu que era Gabriela quem estava deitada sobre aquela maca, sendo levada apressadamente para uma sala de cirurgia, ele se desesperou genuinamente.
Ele correu ao lado da maca, acariciando os cabelos e o rosto de Gabriela.
-Vai ficar tudo bem, minha filha! –ele dizia aos prantos, tentado sorrir para tranqüilizá-la.
-Eu estou aqui, minha menina, nunca vou sair daqui. –ele prometeu comprimindo os lábios, se esforçando ao máximo para acompanhar a correria dos médicos pelo corredor.
Gabriela olhava para o pai com amor.
-Eu te amo, pai. – ela sussurrou baixinho, quase sem forças. Ela sabia que era uma despedida.
-Eu também te amo, minha vida. –ele segurou na mão dela com força, e depositou um beijo gentil em sua testa.

Quando os médicos avisaram a ele que ele não poderia passar das largas portas azuis que iriam até a sala de cirurgia, ele depositou outro demorado beijo sobre a testa machucada da filha, e lhe fez uma promessa.
-O papai vai estar aqui, do lado de fora desta porta. Eu não vou sair daqui, nem um segundo se quer. Vou esperar por você. Eu te amo, minha vida. Você é a coisa mais preciosa do mundo para mim. E eu prometo que não vou sair do lado dessa porta, vou ficar esperando por você.
-Eu te amo. –Gabriela sussurrou mais uma vez, e sorriu carinhosamente, olhando diretamente para os olhos do pai dela.

As portas se fecharam, deixando Francisco, chorando angustiado por trás delas.

Os médicos se apressaram para fazer o parto de Gabriela.
Eu suspirei e estendi minhas asas sobre Gabriela mais uma vez, mantendo-a quente e viva.

A bebê nasceu chorando a plenos pulmões. Forte e saudável.

Mesmo fraca Gabriela suplicando sussurrou para a enfermeira.
-Me deixe conhecê-la...
A enfermeira trouxe a bebê para perto do rosto de Gabriela, e ela sorriu, sentindo a pele quente de sua filha contra a sua bochecha. A bebê se acalmou imediatamente.
-Bianca. –Gabriela sorriu e uma lágrima escorreu de seus olhos –Seu nome será Bianca. A mamãe ama muito você.

E então, a máquina ao lado de Gabriela, alardeou um sonoro e demorado beep. E ela adormeceu profundamente. O tempo de Gabriela havia chegado ao fim.

Ao recolher minhas asas de sobre Gabriela, olhei para Bianca pela primeira vez, e me senti instantaneamente cativado por aquela criaturinha tão delicada e minúscula, que voltava a chorar fervorosamente. Minhas asas se iluminaram com mais voracidade, pulsando forte em minhas costas. E eu me vi totalmente rendido por aquela criança. Tendo a certeza absoluta, de que a partir daquele momento, eu seria tudo o que ela precisasse, independente do que isso pudesse significar. E eu seria dela. Eu seria para ela. Até o fim dos seus dias.

Quando a enfermeira enrolou Bianca com panos azuis e brancos, e atravessou aquelas portas com ela nos braços, eu a acompanhei. Francisco estava sentado no chão do hospital, ao lado das largas portas azuis, com o rosto afundado entre as mãos. Quando ele percebeu a aproximação da enfermeira, ele levantou a cabeça lentamente, seu rosto estava severamente avermelhado e os seus olhos excessivamente inchados de tanto chorar.

A enfermeira, apenas balançou a cabeça negativamente para ele, abaixando os olhos com pesar.

Francisco, imediatamente entendeu que Gabriela não havia sobrevivido.

O choro desesperado veio como um urro feroz. E Francisco afundou a cabeça entre as palmas das mãos mais uma vez.
-Minha menininha... –ele murmurava quase que para si mesmo, entre engasgos. –O papai não saiu daqui...
-Minha princesa... –sua voz se tornava fina e aguda, entre engasgos e gemidos cada vez mais estrangulados. –O papai não saiu daqui nem um segundo sequer...

Me aproximei dele, me agachando ao seu lado. Estendendo minhas asas sobre ele, tentando suavizar aquela dor insuportavelmente angustiante que o consumia.
Humanos eram intensos quanto aos seus sentimentos. E de alguma maneira, eu os admirava por isso. Eles eram criaturas extremamente frágeis, e tremendamente significativas.
Francisco estava genuinamente se quebrando por dentro naquele momento. Eu podia sentir a intensidade dos seus sentimentos de dor se expandido por cada parte dele. Era avassalador como a alma dele parecia estar se sufocando e querendo desesperadamente se estilhaçar.

-Olhe para a sua neta... –sussurrei em seu ouvido gentilmente. –Você precisa conhecê-la..
Aos poucos Francisco se acalmou, e levantou a cabeça devagar, e olhou desconsoladamente para a enfermeira, e o bebê em seus braços.
-É um pedacinho de Gabriela... –sussurrei –Ela é linda e precisa de você agora.

Ele se apressou a limpar o rosto com as mangas do casaco, e então se levantou do chão, se aproximando da enfermeira. Ela lhe estendeu os braços, oferecendo para que ele pegasse o bebê no colo, imediatamente Francisco se aprumou e segurou Bianca cuidadosamente em seu colo.
-Sua filha, chamou ela de Bianca. –A enfermeira disse gentilmente, sem disfarçar o semblante triste.
Francisco observou Bianca por um longo momento, enquanto tentava se recompor.

Ele aninhou Bianca com delicadeza contra o peito, dando um leve beijo em sua testa.
-Seja bem vinda minha luz –ele sussurrou carinhosamente enquanto a observava, sem conseguir segurar as lágrimas inevitáveis que escapavam pelos seus olhos mais uma vez, e com a voz embargada, ele prometeu: –O vovô vai cuidar você.

Você leu todos os capítulos publicados.

⏰ Última atualização: Jun 29, 2022 ⏰

Adicione esta história à sua Biblioteca e seja notificado quando novos capítulos chegarem!

Princesa Bianchi (Em andamento)Onde histórias criam vida. Descubra agora