I. lost

54 5 2
                                        

━━━━━━━

30 de abril, 1957

PAUL ENCAROU O TETO DE SEU QUARTO pelo o que parecia ser a miléssima vez naquela manhã. Era possível escutar a voz de Elvis Presley cantando Shake, Rattle And Roll no rádio ao lado da cama. Mas infelizmente, ele não estava nem um pouco afim de sair da cama e lavar o rosto e as mãos. Não foi desta vez Elvis, mas boa tentativa, amigo!

Os raios de sol atravessavam a janela através das cortinas e refletiam no calendário que marcava o início do ano e, consequentemente, o início das aulas. "Você pode faltar as aulas se não... bem, se sentir pronto. Não precisa ir", repetia Jim, afagando os cabelos do filho toda vez que o encontrava encarando o pedaço de papel pendurado na parede. Seu pai estava sendo compreensivo o bastante. Tão compreensível que o fazia se sentir ainda pior. E principalmente, se sentia péssimo por não estar dando atenção ao trompete que o pai lhe dera para estimulá-lo a se interessar pela música. Nos velhos tempos, Jim McCartney fizera parte de uma banda de dança de salão. Quase nada deixava o velho tão feliz quanto tocar as teclas de um piano e a ideia de que poderia transmitir o mesmo interesse musical aos filhos o animava ainda mais. 

Paul estendeu o braço, afastando algumas camisetas e cuecas para emfim encontrar o instrumento dourado. Sentou-se na cama, as costas eretas buscando o apoio do travesseiro. Apanhou fôlego pela boca, assumiu a embocadura como o pai lhe ensinara, encostou o instrumento nos lábios e soprou. Os dedos apertaram os pistões e ele executou algumas notas, a tensão da boca mudando.

Ele parou e largou o instrumento antes de finalizar a sequência. Well I said shake, rattle and roll I said shake rattle and roll, Elvis repetia sem parar. Paul mexeu os pés debaixo do cobertor no ritmo da música, sem perceber. Era um dom que Presley tinha: conseguir fazer as pessoas se mexerem, remexerem e virarem contra a vontade apenas usando sua voz. Por isso trompete não era para Paul. Não conseguia cantar enquanto tocava!

Levantou-se, foi em direção a sua escrivaninha do outro lado do quarto e tomou seu violão em mãos, removendo-o do suporte. Encarou o porta-retrato. Começou a dedilhar as cordas e uma melodia se formara sem querer. Apenas uma pessoa lhe vinha a mente.

Well I woke up late this morning
My head was in the whirl
Only when I realized
I lost my little girl
Oh oh oh oh

Atrás do vidro envolto por madeira, trajando um vestido de pano simples, o cabelo enrolado, sua mãe sorria para ele. Suas roupas não eram caras ou elegantes e seus cabelos nem sempre estavam bem penteados e arrumados como as das mães de seus colegas de classe, afinal os McCartney vinham da classe operária. Mas isso nunca a impedira de manter os filhos bem vestidos e muito bem educados. O que tinham era o suficiente e sendo uma católica fervorosa, Mary ensinara aos meninos desde cedo a valorizar cada migalha. Ela fazia questão de que eles permanecessem na mesa até que o prato estivesse limpo e caso o contrário, poderiam se preparar para passar o dia inteiro sentados.

Paul se lembrou do piquenique da escola na oitava série. As mesas se enfileiravam uma do lado da outra com tortas, bolos, sanduíches, refrigerantes e diversas outras iguarias. E claro, ele aproveitou para encher a barriga. Na hora do jantar, algumas colheradas foram o suficiente para deixá-lo satisfeito e pediu para se retirar. Fora o primeiro chá de cadeira que tomara na vida! 

Paul riu ao lembrar-se da memória e seus dedos pareciam ter vontade própria ao dedilharem a melodia.

Well her clothes were not expensive
Her hair
Didn't always curl
I don't know why I loved her
But I loved my little girl
Oh oh oh oh

Estava tão concentrado que nem percebera Jim aproximar-se e colocar a cabeça dentro do quarto.

Well gather round people
Let me tell you the story
The very first song I wrote (2x)

Ele levantou a cabeça repentinamente ao escutar uma explosão de aplausos vindo da porta.

— Filho, isso foi magnífico! — ele adentrara ao quarto, o sorriso de orelha a orelha.

Ele se limitou a sorrir. Era nítido o quanto o pai estava feliz em vê-lo compondo.

— Pai, — chamou — eu vou voltar para a escola.

— Você tem certeza? Sabe que não-

— Está na hora de seguir em frente — disse, encarando a foto da mãe e logo Jim entendeu o que ele queria dizer.

Paul relaxou os ombros tensos, deixando que o pai afagasse seus cabelos como sempre fazia.

...

27 de junho, 1957

Wendy tragou o cigarro na ponta dos dedos e tossiu, baforando uma nuvem de fumaça enquanto batia no peito.

— Jesus, Wendy — Ali revirou os olhos. — Você roubou os cigarros da sua mãe de novo?

— Estes são do Cara de bunda — tentou tragar novamente. — Ele os esqueceu antes de sair para o trabalho, então eu resolvi pegar emprestado!

 — Não deveria estar fazendo isso. Não sabe que fumar dá câncer? — Wendy deixou a fumaça escapar pelas narinas, rindo. A amiga fez cara feia. — Aí, qual é a graça?

— Viver dá câncer, Bennet — ela subiu no banco, tapando o sol com a mão para enxergar melhor o pátio da Liverpool Institute. — Está vendo aquele carinha ali, ao lado de Ivan?

Ali espremeu os olhos azuis para enxergar melhor o alvo indicado por Wendy.

— Paul? 

— Conhece ele? — franziu a testa.

— Sim. Ele e Ivan são da mesma classe.

— Sério? — Wendy balançou os braços, descendo do banco. — Bom, seja como for, eu nunca vi essa figura por aqui antes e ele tem cara de ser a pessoa com a vida mais cancerígena de toda a escola! Fala sério, que cabelinho mais ridículo! — riu e estranhou o silêncio repentino da amiga.

— Wendy — chamou, sua expressão era de quem não havia achado graça nenhuma. — A mãe de Paul teve câncer e morreu ano passado.

Por isso não o tinha visto antes por aqui, pensou.

— Oh... meus pêsames então — Wendy encolheu os ombros, voltando-se para encarar o garoto a alguns metros de distância. Ele não se parecia com alguém que perdera um ente querido. Pelo menos, não para ela. Pessoas assim não deveriam estar se desfazendo em lágrimas aos quatro cantos? Sua mãe ficara assim quando o avô da garota morrera. Ela passava o dia inteiro trancada no quarto, se lamentando por não ter feito mais, por não ter sido uma boa filha e mais um monte de besteiras que os adultos dizem quando querem culpar a si mesmos.

Wendy sabia que na verdade ela só sentia pena de si mesma. E não a culpava por isso pois também sentia. Quem em sã consciência seria tola o suficiente para se casar com alguém tão hostil quanto o Cara de bunda?

— Mas é melhor assim, não? Ele já deve estar acostumado com o câncer — sorriu, imediatamente recebendo um olhar reprovador de Ali e um soquinho no braço. — Ai!

— Como consegue ser tão insensível? — bufou, balançando os cachos dourados. — Eu não sei porque ainda sou sua amiga!

— É porque você me ama — foi isso o que ela disse, mas sabia que talvez Ali apenas tivesse pena de deixá-la sozinha. Sozinha como sua mãe. Pena.

— Sua besta — Ali levantou-se, ajeitando o uniforme. — Vem, vamos falar com eles!

— Nãão! Não quero me juntar ao seu namorado e o cara do cân- — ela tossiu ao receber outro olhar reprovador antes de completar a frase. — Aff, você não tem mesmo senso de humor, hein!

— Isso não é engraçado. Agora, vamos!

Wendy jogou o cigarro no chão e o apagou com o pé para que em seguida fosse arrastada, a contragosto, por Ali em direção aos rapazes.

TRUE LOVE, paul mccartneyOnde histórias criam vida. Descubra agora