Capítulo 4

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Barrett  McClain  sentiu  o  sangue  subir‐lhe  ao  rosto  ao  ver  o  filho  junto  à  cadeira  de  Emily,  com  um  sorriso  zombeteiro  nos  lábios    Pecos  sempre  aparecia  quando menos era esperado... Ou menos desejado. Torcendo para que aquela visita  fora de hora fosse curta, Barrett forçou um sorriso e disse com voz calma:  —  Que bom ver você, filho! Eu não sabia que estava em Marfa. Pecos deixou‐ se cair na cadeira ao lado da tia, piscando para  ela, com ar bem‐humorado.  —    Na  verdade,  eu  estava  no  México.  —  Ele  fixou  os  sorridentes  olhos  cinzentos no pai. — Mas fui tomado por um estranho pressentimento. Algo me disse  que  eu  deveria  voltar  imediatamente  a  Tierra  dei  Sol,  e  foi  o  que  fiz.  Aconteceu  alguma coisa? Foram as suas orações que eu ouvi pai? O senhor estava rezando para  que eu voltasse?  Pecos riu, sem tirar os olhos do pai. Barrett McClain não achou graça.  —  Não acha que é um pouco cedo para piadas? Não sei o que veio fazer aqui,  mas...  —  Ora, papai! Não ficou contente em me ver? Pensei que o senhor...  —  Chega, Pecos — Barrett exclamou, irritado com a zombaria ~ do filho. —  Não sei que motivo você tem para viver me provocando!  —  Calma, Barrett — intercedeu Emily. — O rapaz passou semanas fora daqui.  Não dá para você...  —    Não  tem  importância,  tia  Em.  Ao  que  parece,  cheguei  em  má  hora.  —  Pecos sorriu para a tia, antes de voltar a fitar o pai. — Posso saber por que o senhor  não me quer em casa agora?  Barrett ignorou a pergunta.  —    Por  quanto  tempo  pretende  ficar,  Pecos?  Semicerrando  os  olhos,  Pecos  serviu‐se de uma xícara de café.  —  Se o senhor me disser por que não me quer aqui, talvez eu lhe diga quando  vou embora.  Sem conseguir se controlar, Barrett deu um murro no braço da cadeira em que  se achava.  —  Se você ficar para sempre ou for embora agora, para mim não faz a menor  diferença! Mas vou lhe dizer uma coisa, e uma vez só: não quero ouvir uma palavra  sua contra a minha decisão! Dentro de alguns dias teremos hóspedes em Tierra deiSol. Jeremiah Webster, meu velho amigo, está doente e às portas da morte. Ele e a  filha vêm para cá. Depois da morte do pai, a filha continuará conosco.  — Como assim? Essa mulher vai trabalhar aqui? Ou vai ficar como hóspede  permanente? Uma filha para você e uma irmã para mim? É isso?  — Ela ficará como minha esposa — explodiu Barrett, zangado com o filho, por  fazê‐lo sentir‐se tolo e culpado.  Pecos  virou‐se  para  a  tia.  O  rosto  dela,  muito  pálido,  tinha  uma  expressão  preocupada.  —  Pecos,  meu  querido...  —  começou  Emily,  com  medo  do  que  ele  pudesse  dizer ou fazer.  Mas  ele  sorriu,  recostando‐se  na  cadeira.  E,  como  sempre,  fazendo  o  que  menos se esperava dele, comentou num tom pensativo:  —    Uma  mamãe  nova  em  folha.  Que  maravilha!  Espero  que  ela  me  conte  histórias e me embale na hora de dormir, quando eu me sentir inquieto.  —    Você  tem  que  zombar  de  tudo?  —  indagou  Barrett,  furioso.  —  Eu  lhe  comunico que pretendo me casar de novo e você faz piadas? Não tem nada de peso a  me dizer?  Num tom ainda baixo e calmo, Pecos interrompeu o pai.  —  Faria diferença, se eu tivesse? O senhor nunca pediu a minha opinião em  nada. Agora, faça o que achar melhor. Case‐se com uma mulher que nunca viu. Para  mim, não faz a menor diferença. — Levantando‐se, ele beijou a tia e murmurou: —  Vou  cumprimentar  Reno,  depois  vou me  lavar  e  dormir  um  pouco.  Quer almoçar  comigo, quando eu acordar?  —  Com prazer, querido.  Fitando novamente o pai, Pecos perguntou:  —  Quando é que a tímida noiva e seu orgulhoso papai vão chegar?  —  Daqui a algumas semanas — contou Barreti, fazendo o possível para não  perder a compostura. — Até lá, você já terá se cansado da Tierra dei Sol e ido embora.  —    Hum...  —  O  rapaz  cocou  distraidamente  a  barba  por  fazer  e  sorriu.  —  Passei  tanto  tempo  fora  de  casa,  ultimamente,  que  talvez  resolva  ficar  e  conhecer  minha nova mamãe.  Com um riso zombeteiro, ele girou nos calcanhares e se afastou seguido pelo  olhar fulminante do pai.    Reno  Sanchez  virou‐se  na  cama  estreita,  tentando  se  levantar.  Seus  olhos  escuros  abriram‐se  por  um  instante,  mas  logo  se  fecharam.  Um  dos  braçosescorregou  para  fora  da  cama,  enquanto  roncos  suaves  escapavam  de  sua  boca  entreaberta.  —  Reno,  seu  vagabundo,  abra  a  porta!  —  uma  voz  de  homem  ribombou,  quebrando o silêncio do pequeno quarto.  Os  olhos  escuros  abriram‐se  novamente.  Reno  passou  a  língua  pelos  lábios,  esfregou os olhos e levantou a cabeça, ainda sonolento.  — Vá para o diabo, seu gringo de boca mole! — gritou em resposta, pensando  que era um dos vaqueiros da fazenda.   — Se eu tiver que...  Mas interrompeu‐se bruscamente, quando a porta abriu‐se com estrondo e o  intruso entrou, sorrindo.  —  Levante‐se,  dorminhoco!  —  Pecos  exclamou,  arrancando  os  lençóis  da  cama.  Rindo  também,  Reno  levantou‐se de um salto e agarrou a calça, que estava  sobre um banquinho.  — Pecos, seu filho da mãe! Quando foi que chegou? Já vestido, Reno abraçou  o amigo.  — Agora mesmo. Mas que droga, Reno! Sua gente não consegue fazer nada,  porque está sempre se abraçando. Tire essas mãos de mim!  Sem se ofender, Reno sorriu com afeto para o homem que mais admirava, o  dente de ouro faiscando à luz da manhã.  — Que coisa, Pecos! Eu estou feliz por vê‐lo. — Ele tornou a abraçar o amigo,  que desta vez agüentou firme, mas não escondeu o alívio, ao ser solto. — Quer uma  xícara de café?  — Você não tem Bourbon  Pecos correu os olhos pelo quarto de adobe, que há anos era o lar de Reno.  Reno  nascera  em  Tierra  dei  Sol,  cinco  anos  antes  de  Pecos.  Filho  de  um  vaqueiro e uma das criadas da casa ficara órfão aos catorze anos de idade. Seu pai,  um homem de sangue quente, envolvera‐se com uma das ajudantes da cozinheira da  fazenda e cometera o erro de satisfazer sua paixão numa noite em que achava que a  esposa e o filho dormiam. Mas ela estava acordada e seguira até o celeiro, onde o vira  com a outra.  Tomada  pelo  ciúme,  Connie  Sanchez  pegara  o  punhal,  que  sempre  levava  consigo,  e  o  enterrara  nas  costas  do  marido.  Mas  se  arrependera  de  imediato  e,  gritando mais alto que a garota apavoradaʹ que tentava se levantar, jogara‐se sobre o  marido, implorando‐lhe que falasse com ela. Raul Sanchez, no entanto, estava morto.  Com as lágrimas escorrendo pelo rosto, Connie arrancara o punhal das costasdele. Enquanto a outra ainda gritava, deitara‐se ao lado do marido morto e, com uma  punhalada certeira no coração, tirara a própria vida.  Reno  Sanchez  acordara  com  os  gritos.  Já  sabendo  o  que  havia  acontecido,  vestira‐se o mais depressa possível e correra para o celeiro. Fora o primeiro a chegar.  Ajoelhando‐se  junto  aos  pais,  tentou  ouvir  seus  batimentos  cardíacos.  Não  havia  nenhum.  De  olhos  secos,  levantou‐se e cobriu‐os com uma das cobertas dos  cavalos.  — Dios tenha piedade de suas almas — murmurou, fazendo o sinal da cruz.  Depois disso deixou o celeiro, não mais um garoto. E à luz da lua, prometeu a  si mesmo jamais quebrar os votos sagrados do matrimônio. Também não permitiria  que o desejo físico arruinasse sua vida ou a de outro ser humano.  Reno cumpriu sua promessa. Apesar de ser um homem amoroso e de sangue  quente,  jamais  perdeu  o  controle  de  suas  emoções.  Casou‐se  uma  vez  e  foi  fiel  à  esposa.  Desde  que  enviuvou  não  se  apaixonou  por  outra  mulher.  Provavelmente  jamais se apaixonaria, pois tivera a melhor e não queria outra.  Pecos  estavam  com  nove  anos,  na  época  em  que  Reno  perdeu  os  pais.  Querendo ouvir todos os detalhes da tragédia, foi à cabana dos Sanchez, alguns dias  depois  do  duplo  funeral.  Quando  Reno  não  lhe  deu  nenhuma  informação  espontânea,  Pecos  não  hesitou  em  fazer‐lhe  perguntas  diretas,  pois,  afinal,  o  mexicano não passava de um empregado da fazenda.  —  O que foi que houve, mexicano? — indagou. — Seu pai estava pulando a  cerca com a ajudante da cozinheira?  Com um olhar feroz, Reno jogou‐se sobre Pecos, agarrando‐o pelo colarinho.  —  Seu garotinho estúpido e mimado! Nunca mais fale assim comigo. Meus  pais  estão  mortos.  Como  eles  morreram,  não  impor‐;  ta.  Eu  amava  os  dois  e  vou  arrancar‐lhe a cabeça, se ouvir você j falando deles assim novamente. Agora, dê o  fora daqui! Esta éj a minha casa.  Pecos,  assustado,  obedeceu  sem  hesitar.  Mas  viu  as  lágrimas  no  rosto  orgulhoso de Reno Sanchez. Nesse dia, decidiu ser amigo dele. Levou algum tempo  andando atrás do garoto mais velho e, no fim, disse‐lhe, com franqueza, que gostaria  de ser seu amigo. Reno não o gostaria disso?  Reno riu, então, despenteando o garoto mais novo.  —  Si, Pecos — assegurou. — Podemos ser amigos para sempre, desde que  você não se esqueça de que não ligo a mínima para f o fato de o seu sobrenome ser  McClain. Está bem assim?  —  Si, Reno. — Pecos sorriu para ele. — E por que você haveria de ligar?  Depois  daquele  verão,  dezoito  anos  atrás,  Pecos  McClain  e  Reno  Sanchez  tornaram‐se tão unidos quanto dois irmãos. Passavam a maior parte de seu tempolivrem  juntos,  cavalgando,  caçando,  nadando  e  deitados  sob  a  luz  das  estrelas,  sonhando com um futuro cheio de viagens e aventuras.   Quando  Barrett  McClain  o  censurava  por  isso,  Pecos  dizia‐lhe  não  ligar  a  mínima para o fato de o sobrenome de Reno ser Sanchez. Nessas ocasiões, ele era  invariavelmente castigado com surras severas, por sua linguagem e desrespeito. Mas  de  nada  adiantava,  pois  Pecos  decidira  ser  como  seu  amigo  Reno:  ele  mesmo  selecionaria  as  pessoas  com  quem  desejava  passar  seu  tempo  e  não  mudaria  de  opinião, por mais que o pai o surrasse.  Sentando‐se à cavaleiro numa das cadeiras do velho amigo, Pecos observou‐o  servir  o  café.  Acrescentando  uma  dose  de  Bourbon  a  sua  xícara,  tomou  um  gole  e  sorriu.  —  Você  devia  ter  ido  comigo  nesta  viagem,  Reno.  Não  vai  acreditar,  mas  encontrei a mulher dos meus sonhos, em Paso.  Paso dei Norte, na fronteira entre o Texas e o México, era um lugar excitante,  onde  rapazes  aventureiros  podiam  encontrar,  com  facilidade,  os  prazeres  que  queriam.  Todos  os  salões,  restaurantes e casas de jogos da cidade ficavam abertos  vinte e quatro horas por dia, a semana inteira. Lá, era fácil saciar todos os desejos e  provar  até  mesmo  os  frutos  mais  proibidos.  Pecos  McClain  era  um  de  seus  freqüentadores  mais  conhecidos,  sendo  respeitado  e  temido  por  jogadores  e  visitantes,  além  de  muito  procurado  pelos  dois  tipos  de  mulher  que  existiam  na  cidade.  —  Como é essa sua garota? — Reno perguntou ansioso para ouvir as histórias  do amigo. — Mas, antes de qualquer coisa, me dê um cigarro.  —  Que droga, Reno! Você nunca compra cigarros? — Apesar da aspereza na  voz, Pecos sorria. Tirando o maço do bolso, ele o jogou sobre a mesa, recostando‐se  melhor  na  cadeira.  —  Encontrei  essa  garota  na  minha  última  noite  lá.  Eu  tinha  dormido a tarde inteira e resolvi tomar um banho e procurar companhia feminina.  —  Ah, síl Aposto que você...  —  Vai me deixar contar ou não?  —  Claro. Desculpe ter‐lhe interrompido.  —  Ótimo! Depois de um banho, eu me vesti e fui para a praça, procurando  um lugar para ir. Foi quando me vi diante do Hurri‐cane Gussieʹs. Eu tinha ouvido  dizer que a cantora de lá era linda, loira, com uma pele que parecia porcelana e um  corpo de tirar o fôlego de qualquer um.  Pecos interrompeu‐se, esfregando os cansados olhos cinzentos. Reno esperou  que ele continuasse o que logo aconteceu.  —  Mesmo achando que aquilo tudo era exagero, resolvi entrar. No bar, pedi  uma garrafa de uísque e me encostei no balcão. Exatamente quando eu estava meservindo, o pianista começou a tocar, as cortinas de veludo vermelho se abriram e  uma mulher surgiu no palco. Todos começaram a gritar ʺAngel, Angelʺ, enquanto eu  a fitava de boca aberta, como um bobo. Ela era linda, Reno! E o nome, ʺanjoʺ, parecia  feito de encomenda para ela.  —  O que aconteceu, então? Essa Angel também gostou de você?  —    Gostou.  Os  olhos  dela,  verdes  como  esmeraldas,  percorreram  o  salão  e  foram parar em mim. O tempo todo, ela cantou com os olhos nos meus. E só canções  de  amor!  Quando  terminou,  foi  ao  meu  encontro,  e  nós  procuramos  uma  mesa  discreta. Pedimos champanhe, para acompanhar a refeição, e Angel me fez muitas  promessas, entre beijos deliciosos. Completamente fascinado, sugeri que subíssemos,  e ela concordou. Abraçados, meio ʺaltosʺ e excitados, começamos a subir a escadaria.  Estávamos no meio, j quando um inglês louco atravessou o salão correndo, com um  revólver na mão. Ele gritava que Angel lhe pertencia e que ninguém mais a tocaria,  além dele,  —  Diosl — Reno exclamou, impressionado.  —  Eu empurrei Angel para um lugar seguro e procurei meu revólver. Mas  antes que eu pudesse tirá‐lo do coldre, o inglês já tinha apertado o gatilho. — Pecos  meneou a cabeça. — Sabe onde ele mirou? No meio das minhas pernas!  —  Uau! E ele...  —  Não, eu ainda sou um homem. Graças a Deus, o sujeito ti‐ʹ nha péssima  pontaria. A bala passou por mim e foi se enterrar no corrimão da escada.  Reno sorriu, fitando o amigo com admiração.  —  Você é mesmo um sujeito de sorte, Pecos!  —    Não  tanto  quanto  você  pensa.  O  maldito  xerife  ouviu  o  tiro  e  veio  correndo,  com  um  rifle  de  carga  dupla.  Ele  nos  meteu  na  cadeia,  sem  fazer  uma  pergunta sequer, e, em vez de passar a noite na cama de Angel, passei‐a atrás das  grades. — Rindo, Pecos inclinou‐se para a frente e apoiou os cotovelos sobre a mesa.  —  Na  manhã  seguinte,  tive  de  pagar  vinte  e  cinco  dólares  de  fiança  para  sair.  —  Ainda rindo, ele se levantou. — Eu vou dormir um pouco, meu velho. Só passei por  aqui, para cumprimentar você. O que acha de sairmos esta noite e irmos a Marfa?  Levantando‐se, Reno acompanhou Pecos até a porta.  —  5/ʹ. Podemos visitar Georgina e Lupe. Lupe tem sentido a sua falta, Pecos.  —  Vamos ver. Lupe é bonita, mas não é Angel. Por Deus, Reno, se aquela  mulher não fosse uma prostituta, eu me casaria com ela!  —  Está brincando, não é?  —  Não estou, não. — Pecos sorriu, levando a mão ao ombro do amigo. — Já  soube da novidade? Meu pai resolveu se casar de novo.Eu ouvi dizer. Não é uma boa coisa para você, é?  — Nem tanto. Você sabe como o meu velho é pão‐duro. — Pecos fitou a casa  da fazenda, depois sorriu com indolência. — Essa fulana na certa é uma solteirona  magra e seca, sem o menor charme. Acho que para tirar um centavo que fosse do  meu pai, uma mulher teria de ter a beleza da minha Angel.

Anjo MalditoOnde histórias criam vida. Descubra agora