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"Eu, que meditava ir ter com a morte, não ousei fitá-la quando ela veio ter comigo." - Memórias Póstumas de Brás Cubas, Machado de Assis.
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A vida. Simplesmente vida: corações pulsantes, sangue correndo pelas veias, pulmões a todo vapor... Miserável e incompleta vida, onde apenas os ricos a tem transbordando felicidade e ganância até o último pulsar desesperado do órgão necessário para sobrevivência desses seres tão frágeis e hostis.
Não sou mais capaz de lembrar perfeitamente sobre como era minha vida, nem o que vivi antes de minha morte, apenas me recordo da enjoada e infeliz sensação da dor dilacerante das facadas me acertando com afinco e dois pares de estranhas pontas afiadas entrando em contato com a minha pele, penetrando a carne dolorosamente, sugando não só o meu sangue, assim como minha alma e injetando o terrível e perigoso veneno nas minhas veias, após aquilo, fui incapaz de manter-me desperto e, num suspiro pesaroso, achei que seria meu fim definitivo, então eu apaguei, acordando o que seriam dias depois, sem sentir nada, as feridas em meu corpo já não existiam, nem sequer havia cicatrizes, estavam curadas e eu ouvia o tenebroso canto faminto dos corvos rodeando o meu corpo, implorando por um pedaço da carne morta, aliás, quase morta.
Eu estava vivo, todavia eu não sentia como se estivesse, não conseguia respirar, não sentia o coração bater, não sentia nada, um grandioso vazio me assolara naquele instante. E não fora difícil adivinhar o que tinha me ocorrido: vampiros. Atacavam quando queriam e onde bem entendessem, não importara nunca a eles quem quer que fosse sua próxima vítima, nem qual era sua classe social. Seres monstruosos que me tornaram um deles acidentalmente, preferia a morte a ter que me submeter a beber sangue e matar pessoas inocentes, para que não sofressem o mesmo mal sufocante que é ser uma besta.
A imortalidade viria a se tornar o maior bem para aqueles que tanto a desejam, contudo nunca será, é um fardo pesado que se tem que carregar até o fim dos tempos, se é que existe um.
Há poucas coisas de minha vida que me recordo, porém jamais irei esquecer-me daqueles olhos, que eram tão brilhantes e cheios de vida. Minha dor será infinita enquanto lembrar-me deles, serei obrigado a me atrofiar até onde essa vida sofrida me levar - se é que é uma vida - e lamentar, pois ninguém merece o fim de sua própria luz para andar cegamente nas trevas, principalmente quando eu tenho plena consciência de que tudo foi culpa minha e apenas minha.
Não era um bom tempo para aquele tipo de lembrança, afinal o breu da noite já tomava conta dos céus romenos do dia trinta de dezembro, era uma noite nublada, obscura e sombria. Eu me encontrava sozinho, degustando um vinho inacabável para saciar a vontade de um sangue humano que eu não ousava encostar os lábios há 5 longas décadas.
Era meu aniversário de 125 anos, sendo mais um ano que eu passava sem ver a luz do dia, preso nas minhas próprias recordações, fazendo exatos 100 anos que eu havia morrido e me tornado a criatura que gerava mais repúdio entre os humanos.
Permaneci num silêncio tão profundo e incômodo que chegava a ser ensurdecedor. Por longos minutos, apenas ouvi o som noturno da floresta e os ruídos do meu castelo aos pedaços. Bebi o último gole de vinho da minha taça de ouro em um murmúrio rouco e pesaroso, senti uma gota avermelhada do líquido descendo pelos meus lábios, passando pela pele de minha garganta e encontrando o tecido de minhas vestes, recordando-me brevemente do horror dos meus primeiros dias como um monstro, onde eu manchei todas as minhas roupas de sangue vermelho-vivo, tive de passar a lavá-las à mão, uma por uma, enquanto olhava para o nada, numa luta interna para decidir se eu havia me arrependido das atrocidades que eu cometi naquela época ou não.
Levantei em silêncio, apesar da cadeira ranger alta no chão. Deixei a taça em cima do cômodo e levei a garrafa de vinho comigo, terminaria de beber o rotineiro sabor enquanto terminava mais uma de minhas esculturas melancólicas, era minha única forma de extravasar a dor e tentar manter a calmaria da besta dentro de mim. Apesar da bebida não pôr um fim na minha fome, aliviava de certa forma, entretanto eu tinha total noção de que eu não iria conseguir ir além disso após um mês, a fera consumiria meu corpo e minha mente sem qualquer controle.
Enquanto andava pelos corredores, me permiti olhar para a Lua que aparecia e desaparecia entre as frestas das cortinas das janelas góticas. Era uma linda lua cheia, a última do ano, que se escondia dentre as nuvens carregadas de chuva.
Há séculos eu não via a Lua, então decidi parar em frente a uma das janelas do enorme corredor e puxei levemente uma das cortinas vermelhas e empoeiradas para o lado, a fim de ver ao menos um pouco do astro antes da tempestade raivosa atingir com força o meu castelo, fazendo com que ele se tornasse ainda mais corroído e completamente arruinado.
Quando o astro se escondeu, dando lugar a nuvens pesadas com aspecto odioso, me permiti recuar e iria fechar a cortina, quando algo captou minha atenção, era um aroma, algo diferente, nunca havia sentido algo tão bom, era doce... Era inexplicável. Terrivelmente e, apaixonadamente, Diabólico. Não dava para saber, mas tinha certeza que meus olhos ficaram escarlates, respirei fundo sentindo as narinas dilatarem com o cheiro delicioso, fazendo com que eu me sentisse vivo. A garrafa escapou-me e espatifou-se em milhões de pedaços no chão empoeirado, porém de nada me importava, pois senti o aroma arrebatador tomando conta de todo o meu olfato, despertando a besta que não sentia uma gota de sangue já há tanto tempo que mal era capaz de lembrar o gosto.
Abri a fresta da cortina mais uma vez e corri os olhos por toda a floresta que ficava a frente de meu castelo, olhei todo o campo morto com rapidez, então, eu achei: um rapaz alto e alvo, ele estava distante, muito distante para eu conseguir vê-lo por completo, o cabelo negro ao vento sacudia quase delicadamente. Era ele. Aquele aroma tão apetitoso, vinha dele. Notei quando ele olhou para onde estava indo e se deparou com o meu castelo, talvez tenha se assustado, afinal, assim que encarou todo o monumento aos pedaços, deu meia-volta correndo.
Há tempos eu não sentia o tão glorioso aroma de algo tão delicioso, do tipo que fazia minha garganta secar e o monstro em mim implorar para experimentar nem que fosse uma simplória gotícula de sangue daquele rapaz, mas eu não podia simplesmente segui-lo e assustá-lo de forma tão bruta, então permaneci no castelo, cobrindo a janela mais uma vez e, por fim, suspirando pesado enquanto me lembrava que meu único propósito na Terra era apenas me esconder nas sombras para não ser atacado e nem atacar novamente.
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Diabolicus Sanguis [jjk + kth]
FanfictionEra quase fim do século XIX, e Vante, que um dia já fora príncipe, festejava dolorosamente seu centésimo vigésimo quinto aniversário, sozinho, nas ruínas de um castelo abandonado, às sombras de todo o mundo, sem sentir uma gota de sentimentos ou emo...