Dois

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Não tínhamos entendido por que Cecilia havia se matado pela primeira vez, e entendemos menos ainda quando fez isso de novo. Seu diário, inspecionado pela polícia como parte da investigação rotineira, não confirmou as suposições de amor não correspondido. Dominic Palazzolo só era mencionado uma vez naquele livrinho de papel de arroz e iluminuras feitas com canetinhas coloridas, que o tornavam parecido com um Livro de Horas ou uma Bíblia medieval. Desenhos em miniatura cobriam as páginas. Anjos rosa-chiclete mergulhavam das margens mais altas ou raspavam as asas entre parágrafos apertados. Donzelas de cabelo dourado pingavam lágrimas azul-marinho na lombada do livro. Baleias cor de uva esguichavam sangue ao redor de um recorte de jornal (colado na página) contendo uma lista de recém-chegados à categoria das espécies em risco de extinção. Seis pintinhos gritavam em meio a cascas de ovo, perto de uma entrada feita na Páscoa. Cecilia tinha enchido as páginas com uma profusão de cores e arabescos, escadas feitas de guloseimas e trevos listrados, mas o registro sobre Dominic dizia apenas: “Hoje o Palazzolo pulou do telhado por causa da Porter, aquela vagabunda endinheirada. Quanta burrice”. Os paramédicos voltaram, a mesma dupla, embora tenhamos levado algum tempo para reconhecê-los. Por medo e polidez, tínhamos atravessado a rua e nos sentamos no capô do Oldsmobile do sr. Larson. Enquanto saíamos, nenhum de nós pronunciou uma palavra sequer, exceto Valentine Stamarowski, que após cruzar o gramado gritou para o sr. e a sra. Lisbon: “Obrigado pela festa”. O sr. Lisbon ainda estava mergulhado até a cintura em arbustos, sacudindo as costas como se estivesse tentando arrancar Cecilia ou apenas soluçando. Na varanda, a sra. Lisbon mandou as outras meninas virarem-se na direção da casa. O sistema de irrigação, programado para ligar às oito e quinze, acordou para a vida assim que a ambulância apareceu no fim do quarteirão, avançando a uns vinte e cinco quilômetros por hora com as luzes e a sirene desligadas, como se os paramédicos já soubessem que não havia mais nada a fazer. Primeiro saiu o magrinho de bigode, depois o gordo. Pegaram a maca imediatamente, em vez de examinar a vítima antes, um lapso que mais tarde aprendemos com profissionais médicos se tratar de uma violação de procedimentos. Não sabíamos quem tinha chamado os paramédicos, ou como eles já sabiam que naquele dia não passariam de agentes funerários. Tom Faheem disse que Therese tinha entrado em casa e telefonado, mas fora ele todos nos lembrávamos de ter visto as quatro meninas Lisbon restantes imóveis na varanda até a chegada da ambulância. Mais ninguém na nossa rua sabia o que tinha acontecido. Os gramados idênticos ao longo do quarteirão estavam vazios. Alguém fazia um churrasco em algum lugar. Nos fundos da casa do Joe Larson dava para ouvir os dois maiores jogadores de badminton do mundo rebatendo uma peteca sem parar. Os paramédicos afastaram o sr. Lisbon para conseguir examinar Cecilia. Não havia sinal de batimentos cardíacos, mas seguiram em frente e tentaram salvá-la assim mesmo. O gordo serrou a cerca enquanto o magrinho se preparou para segurar Cecilia, pois puxar a menina pela ponta farpada era mais perigoso que deixá-la perfurada. Quando a estaca se soltou com um estalo, o magrinho cambaleou para trás por conta do peso de Cecilia. Então recuperou o equilíbrio, deu uma volta em torno do próprio eixo e colocou-a sobre a maca. Enquanto carregavam Cecilia para a ambulância, a estaca serrada mantinha o lençol erguido, como se fosse o pau de uma barraca. Já eram quase nove horas. Do telhado da casa do Chase Buell, onde nos reunimos para acompanhar o que aconteceria em seguida depois de termos tirado as roupas engomadas, podíamos enxergar, mais além de uma porção de árvores que irrompiam no céu, a demarcação abrupta do ponto onde essas árvores terminavam e começava a cidade. O sol se punha em meio à névoa das fábricas distantes, e nos cortiços adjacentes os vidros dispersos apanhavam o brilho cru do pôr do sol filtrado pela poluição. Ali no alto, escutávamos sons que geralmente não chegavam até nós, e agachados sobre as telhas cobertas de alcatrão, com as mãos apoiando o queixo, atinamos aos poucos com uma fita indecifrável que tocava de trás para a frente os gritos e clamores da vida urbana: o latido de um cão acorrentado, buzinas de carros, vozes de meninas gritando números em um jogo obscuro e obstinado — sons da parte empobrecida da cidade, que nunca tínhamos visitado, misturados e abafados, desprovidos de sentido, carregados pelo vento desde aquele lugar. Então: escuridão. Luzes de carros se movendo ao longe. Mais perto, luzes amarelas sendo acesas dentro de residências e revelando famílias reunidas ao redor de televisores. Um por um, fomos todos para casa.

As Virgens Suicidas - Jeffrey Eugenides Onde histórias criam vida. Descubra agora