Três

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As flores chegaram mais tarde do que era de costume à casa dos Lisbon. Dada a natureza da morte, a maioria das pessoas decidiu não mandar flores para a casa funerária. Em geral, todos postergaram o envio, sem saber se o melhor seria deixar a catástrofe passar em silêncio ou agir como se tivesse sido uma morte natural. Mas, no fim, todos mandaram alguma coisa: coroas de rosas brancas, ramalhetes de orquídeas, peônias com gotas de orvalho. Peter Loomis, que fazia entregas para uma floricultura, disse que a sala inteira da casa dos Lisbon ficou coberta de flores. Buquês proliferavam de poltronas e se espalhavam pelo chão. “Nem chegaram a colocá-las em vasos”, disse. Quase todos optaram por cartões genéricos que diziam “Meus pêsames” ou “Condolências”, ainda que os mais conservadores, acostumados a escrever bilhetes para todas as ocasiões, tenham se esforçado na composição de recados mais pessoais. A sra. Beards citou versos de Walt Whitman, que passamos a murmurar entre nós: “All goes onward and outward, nothing collapses,/ and to die is different from what any one supposed, and luckier”. * Chase Buell deu uma olhada no cartão escrito pela sua mãe enquanto o enfiava por baixo da porta dos Lisbon. Dizia: “Não sei o que vocês estão sentindo. Não vou nem fingir”. Alguns reuniram coragem para fazer visitas. O sr. Hutch e o sr. Peters foram até a casa dos Lisbon em ocasiões distintas, mas houve pouca diferença em seus relatos. O sr. Lisbon os convidou a entrar, mas antes que pudessem mencionar o assunto doloroso foram colocados diante de uma partida de beisebol. “Ele não parava de falar dos reservas no aquecimento”, contou o sr. Hutch. “Diabos, eu fui lançador na faculdade. Tive que esclarecer algumas coisas básicas. Para início de conversa, ele queria tirar o Miller, que era nosso único arremessador decente. Acabei esquecendo o que tinha ido fazer lá.” Segundo o sr. Peters, “O sujeito não estava inteiro ali. Não parava de mexer no controle de tonalidade da televisão, deixando o campo praticamente azul. Aí sentava. Então levantava de novo. Uma das meninas apareceu — vocês conseguiam saber quem era quem? — e nos trouxe umas cervejas. Ele tomou um gole da sua e a deixou de lado”. Nenhum dos homens mencionou o suicídio. “Eu queria ter mencionado, queria mesmo”, confessou o sr. Hutch. “Mas não consegui.” O padre Moody demonstrou mais persistência. O sr. Lisbon recebeu o clérigo da mesma forma que os outros, convidando-o a se sentar diante do jogo de beisebol. Alguns minutos mais tarde, Mary apareceu com cervejas, como se tudo aquilo tivesse sido combinado. Mas o padre Moody não se dispersou. Durante o segundo inning , disse: “Que tal pedir para a sua esposa descer? Vamos conversar um pouco?”. O sr. Lisbon se inclinou em direção à tela. “Receio que ela não esteja falando com ninguém no momento. Anda indisposta.” “Ela não se recusaria a falar com seu sacerdote”, disse o padre Moody. E se levantou. O sr. Lisbon ergueu dois dedos. Seus olhos estavam cheios d’água. “Padre”, disse. “Queimada dupla, padre.”
Paolo Conelli, um coroinha, ouviu por acaso o padre Moody contar a Fred Simpson, o maestro do coro, como tinha se afastado “daquele homem estranho, Deus me perdoe por dizer uma coisa dessas, mas foi Ele quem o criou assim” e subido as escadas. A casa já exibia alguns sinais de descuido, mas nada comparado ao que viria depois. Bolotas de poeira cobriam os degraus. Um sanduíche comido pela metade jazia esquecido no patamar, onde alguém tinha se sentido triste demais para terminar de comê-lo. Como a sra. Lisbon tinha parado de lavar roupas e até mesmo de comprar sabão em pó, as garotas tinham passado a lavá-las à mão na banheira, e quando o padre Moody passou pelo banheiro, viu blusas, calças e roupas de baixo penduradas na cortina do chuveiro. “Era um som até bem agradável”, admitiu. “Parecia chuva.” Um vapor emanava do piso, junto com o cheiro de sabonete de jasmim (semanas mais tarde, pedimos à moça dos cosméticos na Jacobsen’s um pouco de sabonete de jasmim para que pudéssemos sentir o cheiro) . O padre Moody parou do lado de fora do banheiro, acanhado demais para ingressar naquela caverna úmida
que servia de ambiente comum entre os dois quartos compartilhados pelas meninas. Se não fosse padre e tivesse bisbilhotado o interior do banheiro, teria visto o vaso sanitário parecido com um trono onde as meninas Lisbon defecavam publicamente e a banheira que usavam como sofá, forrando-a com travesseiros para que duas irmãs pudessem se esparramar enquanto outra cacheava os cabelos. Teria visto o aquecedor sustentando pilhas de copos e latas de coca-cola e também a saboneteira em formato de concha que, quando necessário, era usada como cinzeiro. Desde que tinha doze anos, Lux passava horas fumando cigarros no banheiro, soltando a fumaça pela janela ou em uma toalha molhada que depois pendurava do lado de fora. Mas o padre Moody não viu nada disso. Atravessou aquela corrente de ar tropical, e nada mais. Às suas costas, sentiu as correntes de ar mais frias da casa, que carregavam grãos de poeira e o cheiro específico da família, daqueles que marcam todas as casas e são reconhecíveis assim que entramos — a casa do Chase Buell tinha cheiro de pele, a casa do Joe Larson tinha cheiro de maionese e a casa dos Lisbon, de pipoca velha, na nossa opinião, ainda que o padre Moody, que só entrou na casa depois que as mortes começaram, tenha dito que “era uma mistura de casa funerária com armário de vassouras. Todas aquelas flores. Toda aquela poeira”. Sentiu vontade de recuar até a brisa de jasmim, mas enquanto estava parado ali, escutando a chuva pingar nos azulejos do banheiro e lavar as pegadas das meninas, ouviu vozes. Fez uma ronda rápida pelo corredor, chamando pela sra. Lisbon, mas ela não respondeu. Voltou ao topo das escadas e já tinha começado a descer quando enxergou as meninas Lisbon pela fresta de uma porta entreaberta. “Nessa época, aquelas meninas não tinham intenção alguma de repetir o erro de Cecilia. Sei que todos acham que foi um plano, ou que lidamos mal com a situação, mas elas estavam tão chocadas quanto eu.” O padre Moody bateu de leve na porta e pediu licença para entrar. “Estavam todas sentadas no chão, e dava para ver que tinham chorado. Acho que tinham organizado uma espécie de festa do pijama. Havia travesseiros por todos os lados. Odeio mencionar isso, e lembro que na mesma hora me repreendi por ter pensado uma coisa dessas, mas estava claro: elas não tinham tomado banho.” Perguntamos ao padre Moody se ele tinha conversado sobre a morte de Cecilia ou sobre o sofrimento das meninas, mas ele respondeu que não. “Mencionei o assunto algumas vezes, mas elas não morderam a isca. Aprendi que não se pode forçar uma coisa dessas. É preciso esperar a hora certa e a pessoa deve estar com o coração aberto.” Quando pedimos a ele que resumisse sua impressão do estado emocional das meninas àquela altura, disse: “Abatidas, mas não derrotadas”.

As Virgens Suicidas - Jeffrey Eugenides Onde histórias criam vida. Descubra agora