Castigos (Parte 1)

8 0 0
                                    

-Desculpe- murmurei, enquanto ele voltava, balançando os cabelos.

- Tudo bem, na sua pele, eu também ficaria estressado.

-Estressada, você quer dizer- o corrigi.

-Como?- ele franziu o cenho- Mas eu sou um menino. Portanto ficaria estressado.

-Mas eu sou uma menina. "Portando" na minha pele, você ficaria estressada.

-Portanto- ele disse-, e que seja, ficaria com um estresse do mesmo jeito.

-Desculpe- repeti, um pouco mais alto, mudando o motivo do meu pedido-, eu não conheço essas palavras estranhas. Não as entendo.

-Pudera também- disse ele, de uma forma inocente e doce- Passou a maioria da vida aqui.

-Você está com fome?-Perguntei, mudando rapidamente de assunto, caso ele quisesse continuá-lo.

-Um pouco. Agora isso me veio à cabeça. Como você arranja comida por aqui?- ele olhou em volta.

-Bom, tem animais, frutas e plantas. Às vezes, quando a névoa está de bom humor, ela me traz umas comidas que eu não sei o nome.

-Névoa?

-Eu acho que é isso. Foi o que me trouxe aqui, e o que trouxe todos os outros, assim como você.

-O que aconteceu com os outros?- ele começou a andar indo sentar-se ao meu lado, no banco.

-Gritavam muito, choravam ou sei lá. A névoa ou algo aqui se irritou e então, Não sente aí!

Ele parou exatamente onde sua bunda ia sentar, a alguns centímetros para encostar-se.

-O que foi?

Peguei um graveto e encostei-o ao banco. No momento em que ele se chocou com a superfície plana e aparentemente inofensiva, ele pode dizer "derreteu". O garoto arregalou os olhos, e então, voltou-se a sentar no chão que antes estava.

-Como – ele sussurrou a voz trêmula- Você consegue viver aqui?- seu sussurro parecia incrédulo.

Dei de ombros.

-Eu não sei- admiti- Eu não agüento, mas suporto. Convivo com a dor, com o medo.

- Eu não conseguiria. É irracional demais para mim. Algo surreal.

Não entendi a maioria das palavras, mas deixe isso de lado. Pedir explicações não adiantaria nada. Um esquilo saiu da toca numa das árvores da floresta sinuosa ao lado. O garoto o ignorou, mas eu sabia o que era. Fui correndo até a toca, e para minha surpresa, lá estava meio que um "presente" de boas vindas, para o mais novo convidado.

Eu o peguei e levei para o menino. Parei um pouco para observar o que ele estava fazendo, enquanto distraia-se para me esperar.

Na sua mão havia um colar, um medalhão para falar a verdade. Era prateado e discreto, mas grande e bonito. Devia estar junto com as roupas, por isso eu não o vi quando ele limpava-se no lago. Ele o observava com um olhar apaixonado, de admiração e gratidão. Só presenciei esses olhares com duas pessoas: minha mãe e meu pai.

Minha mãe não muito, mas meu pai, ah, meu pai sempre me dava esse olhar. Quando chegava de viagens de trabalho, beijava minha mãe e vinha correndo me abraçar. Não importa se ele estivesse cansado ou não, ele fazia de tudo para que risse. Beijava-me e trazia lembranças dos lugares em que viajou.

Senti meus olhos marejarem, e suguei o ar pelo nariz, enxugando as lágrimas que ameaçavam cair. Continuei minha caminhada, em direção ao menino, e ao ver minha aproximação, guardo rapidamente o colar. Resolvi não perguntar sobre ele, isso era assunto seu, e não meu.

-O que é isso?- ele apontou.

-Um presente de boas vindas- coloquei o embrulho no chão e sentei-me junto com ele.

-Você o fez?

-Não- balancei a cabeça, desembrulhando o pacote, tentando fazer o mínimo de barulho possível- Não sei quem foi. Mas foi sorte termos achado.

-Você ter achado, na verdade- ele ironizou.

-Enfim, foi sorte do mesmo jeito. Quer comer ou não?

-Sim, estou com fome- ele alisou a barriga magra- Como sabia que estava lá?

-O esquilo saiu da toca, oras.

-Mas esquilos saem da toca, isso é normal.

-Aqui eles não saem- retruquei.

-Ah não?- ele começou a me questionar- Como eles comem, dona sabe-tudo?

-Aqui eles não comem nozes, e essas coisas que esquilos comem.

-Ah, então o que eles comem?

Eu fiquei irritada, por acaso ele tinha na cabeça uma Wikipédia sobre todos os lugares e seus modos na cabeça? Óbvio que não.

-Olhe- apontei paras as outras árvores atrás dele, mostrando os ossos de animais e pássaros- Agora sabe de tudo seu esperto?

Isso o fez calar por um tempo, até podermos abrir totalmente o pacote.

Pães, frutas, água limpa e só. Alguns grãos que eu não sabia o que eram, e folhas verdes.

-Rúcula- ele sorriu, parecendo aliviado- Eu adoro rúcula.

-O que é rúcula?

-Essas folhas verdes, aqui- ele pegou uma folha-,experimenta.

Peguei as folhas de sua mão, mastigando-as em seguida, e um arrepio súbito seguiu-se pelo meu corpo. Era amargo e seco, me deu náuseas. E virei para o lado e cuspi o resto de salada verde escuro. Ele riu.

- O que foi?

-É horrível. É amargo e ruim, detestei. Como pode gostar disso?- apontei as folhas mastigadas, agora no chão.

-Seu sorriso está lindo, todo verde assim.

-Não vejo graça.

Comemos e fomos para o caminho estreito atrás dos bancos. Lá havia um monte de folhas e capim, que eu havia juntado aos onze para dormir. Não havia frio ou calor á noite, portanto- descobri o significado da palavra- dormia tranquila. Ajudei o menino a fazer o dele, provisoriamente, já que não havia folhas suficientes aos arredores.

-Boa noite- ele cochichou, em meio aos barulhos da noite e da mata.

-Olhe- apontei ao seu lado, onde a névoa estendia-se e ficava densa.

-É a tal névoa?- perguntou, com os olhos verdes acastanhados brilhando no escuro.

Assenti, ainda o encarando.

-Boa noite também- e então me virei.

Comecei minhas contagens;

Era o primeiro dia para ele aqui, eu ainda não sabia seu nome. Um para ele, zero para mim.

Hoje era meu aniversário, e ele não sabia meu nome. Um para ele, um para mim.

Anteontem ganhei uma paulada na nuca, porém não me lembro o motivo, e ele ainda não sabia dos castigos.  Um para ele dois para mim.

Oh não! Se estou certa, amanhã ele receberia seu castigo, eu não estaria aqui para ver.

Você leu todos os capítulos publicados.

⏰ Última atualização: Apr 29, 2015 ⏰

Adicione esta história à sua Biblioteca e seja notificado quando novos capítulos chegarem!

O Vale SombrioOnde histórias criam vida. Descubra agora