Pai!

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O ano era 1972, a fé e a hipocrisia dominavam uma cidadezinha do interior do Mato Grosso chamada Araguaiana. Araguaiana era cortada pelo grande rio Araguaia, onde só era possível atravessa-lo de barco ou canoa. Do outro lado havia uma vila chamada de Vale do Córrego, era a Sodoma de Araguaiana, o que não existia na cidade, existia no Vale do Córrego. Bordéis, bares, forró, mortes, muita sujeira e pecado. A maioria dos puritanos frequentavam o lugar após as missas, enquanto suas esposas ficavam em casa com seus filhos, seus maridos aproveitavam o fim do domingo para beber e transar com as mulheres daquela vila.

Um desses puritanos era Antônio, Antônio era uma boa pessoa pra comunidade católica, casará cedo com Ana com quem teve uma filha de 7 anos, a pequena Flor. Antônio trabalhava todos os dias nas fazendas aos redores da cidade, não tinha uma vida ruim, sempre teve o que queria, inclusive uma moto quase zero que comprou a vista há poucos dias.
Antônio tinha certas fraquezas, o sexo, a perdição e o álcool. Todo primeiro dia do mês, ele ia para o Vale do Córrego com seus amigos da fazenda e só voltavam no outro dia. Deixavam boa parte dos seus salários lá dentro. Suas esposas fingiam que não sabiam e eles fingiam que não sabiam que elas sabiam e assim conviviam sem respeito e talvez sem amor.

A pequena Flor não tinha muitos brinquedos, apesar do pai ganhar bem, quase nunca colocara a pequena Flor como prioridade, principalmente com "bobagens". Então Flor passava o dia brincando na beira do grande rio com seus cachorros, ficava na espreita esperando que alguma coisa boiasse do outro lado do rio para suas pequenas mãos. Teve uma vez que achou um frasco de perfume quase vazio, outra vez viu um chapéu feminino vindo em sua direção girando na superfície da água turva, o dia mais feliz da sua vida foi quando encontrou um pente de plástico azul com rosas pintadas. A maioria dessas coisas viam dos bordéis, mas Flor não tinha idade pra compreender tais assuntos.

Um certo dia, um dia de sol quente, o rio estava muito cheio, havia chovido no dia anterior, Flor andava pelas margens do rio na esperança de encontrar algo de valor, até que viu sua cachorrinha fuçando alguma coisa, correu para conferir e viu que se tratava de uma boneca. A boneca era perfeita, linda, daqueles bebês que se parecem com humanos, os olhos fechados, careca, quase cabia nas suas mãos. A boneca não tinha roupas, apenas um rosário na mão esquerda. A menina pegou a boneca e levou para casa. Seus pais jamais souberam sobre seu tesouro, nunca havia falado sobre seus achados e não seria diferente agora. Brincou com a boneca atrás de sua casa, alí ela tinha privacidade, depois de algumas horas brincando percebeu coisas diferentes acontecendo com a boneca. A boneca além de parecer muito mole, ela soltava secreções pelos orifícios do corpo, foi então que a menina notou que não se travava de uma boneca e sim de uma criança desfalecida e abortada. Ela se assustou e seu coração bateu forte como nunca havia batido antes. Não sentiu medo, apenas agonia e nojo, Flor pegou o rosário da mão da criança morta, cavou uma cova e jogou o corpo da criança, foi até sua mãe e pediu para que rezassem por almas que sofriam e choravam!

Ao chegar da Fazenda, Antônio percebeu a falta de ânimo da filha, quieta no canto, não correu para abraça-lo e nem perguntando se o pai havia trago alguma besteira da fazenda para ela.
Jantaram, Antônio levou a filha para cama e foi conversar com sua mulher.

- O que há com Flor?
- Eu não sei, ela ficou assim quietinha desde mais cedo. Deve estar trocando de dente.
- Eu nunca tinha visto ela assim tão desanimada, se ela não melhorar, vamos levá-la na Dona Carmen, pode ser quebrante ou mau olhado.
- Tudo bem, estou precisando me benzer mesmo.
 
Não haviam acabado a conversa quando ouvem o grito de flor.

- MÃEEE!

Ao entrarem no quarto, viram a menina chorando no canto do quarto com o rosário nas mãos. O pai logou notou o objeto!

- ONDE VOCÊ ARRUMOU ISSO FLOR?

A menina não conseguia responder, só chorar e esconder o rosto.

-ME FALA AGORA FLOR SE NÃO APANHA.
-Oh Homem deixa disso, a menina deve ter achado no rio, é um rosário, não vai fazer mal pra nossa filha. Vamos levar ela pro nosso quarto!

Assim fizeram, levaram a menina pro quarto deles.

2:46 pm

Antônio acorda ouvindo sussuros vindo do lado do seu guarda roupas, levantou-se e viu a menina conversando com o feto morto. Ele se assustou e acordou a mulher.

-Onde você achou isso minha filha?
-Eu achei boiando no rio com esse cordão de reza, antes ela tava morta agora ela tá viva. Olha mãe, ela anda!

A Flor fala rindo apontando pro feto no chão que já estava azul e seus membros já estavam a decair, não tinha mais dedos.

- Eu enterrei no quintal, mas ela voltou pra brincar comigo!

Antônio rapidamente pegou o rosário e saiu de casa, em poucos minutos já estava do outro lado do rio, na casa de Berenice, uma prostituta de aproximadamente 18 anos, quem saberia a idade verdadeira? Bateu na porta gritando por seu nome!

-Berenice, que caralho é isso?
Mostrando o rosário que deu pra Berenice há alguns meses atrás.
- Onde você arrumou isso?
- Não te interessa!

Antônio insistiu e Berenice aceitou conversar com Antônio.
Antônio contou toda a história que Flor contou.

- Pois toda mulher sabe de quem é seu filho, e eu estive grávida de um filho seu. Tirei a criança esses dias e joguei seu corpo no rio.
- O que você fez sua ordinária?
- Ora Antônio, você iria criar a criança? Vc iria mandar dinheiro para que eu pudesse comprar coisas pra ela? Eu sou uma mulher da vida Antônio, ninguém, nunca, jamais assumiria qualquer coisa comigo, só me resta meu corpo e meu tempo e isso a menina tiraria de mim. Você jamais iria voltar e se voltasse seria por uma mais nova e sem nunca ter partido.
-Ela? Era uma menina? Minha menina. Você é uma assassina!
-E em quanto você? Você é um monstro, você matou uma criança, você abortou a criança quando deixou aquelas notas sobre a cama sobre o pretexto de nuca mais voltar se soubesse.

Antônio saiu com pressa sem nem querer sobre os sentimentos da prostituta, sua consciência, suas emoções? Foda-se Antônio só pensava nele!

Berenice voltou para seu quarto, colocou seu disco preferido, levantou sua taça e disse: - Não é a primeira e nem a última vez. Eu sou dona do meu corpo e da minha liberdade!

Antônio na volta pra casa, pegou uma canoa e entrou no rio, no meio do caminho, teve um ataque de pânico, a falta de informação jamais o deixaria entender o que era uma doença emocional. Começou a ouvir vozes e choros de criança, sua canoa começou a afundar e quando caiu em si, Antônio já estava entre as pedras sem oxigênio, vendo sua vida passando por seus olhos e tentando se arrepender. Irá sentir saudades da filha que não amou e remorso da filha que nem chegou a conhecer.

O corpo de Antônio só foi encontrado um mês depois do acidente. Estava roxo, os olhos tinham explodido e em suas mãos o rosário.

Não tenho medo - Contos de horror!Onde histórias criam vida. Descubra agora