Capítulo 4 - Milagre

2 0 0
                                        

Pelos dias que se sucederam, a minha rotina era basicamente acordar, tomar mil medicamentos diferentes, via soro ou oral, assistir algo na TV do meu quarto e esperar que o sono viesse (e ele costumava vir muito rapidamente). Dr. Richard e sua equipe disseram aos meus pais que eu estava com anemia, mas eu não conseguia manter nenhum alimento no meu estômago e, por conta disso, colocaram uma sonda para eu me alimentar.
Eu estava cada dia mais depressiva. Sabia que morreria, mas estar passando por toda aquela jornada no hospital me irritava. Eu queria poder ir para casa, ficar ao lado de quem eu amava e morrer em paz, mas o Dr. Richard estava obstinado a não deixar eu fazer isso, mesmo sob meus protestos dizendo que eu tinha alguma força para voltar para casa. Até que um dia, aconteceu.
Eu acordei no meio da noite sem poder respirar, todo o meu peito queimava em brasas e minha cabeça doía. Me lembro vagamente de ouvir a minha mãe gritando por uma enfermeira e esta chegando para me estabilizar, antes de a escuridão tomar conta de mim.
Acordei com Rach ao meu lado, dormindo. Eu ajustei a visão ao quarto pouco iluminado. Àquela altura, eu já estava acostumada a acordar e encontrar algum dos meus amigos ou família sentados ao lado da minha cama, na penumbra. Ela acordou assim que percebeu minha movimentação. Nunca havia visto Rachel tão pálida e cansada.
- Quantos dias eu dormi? - Perguntei, levantando a cabeça só para constatar que era melhor não pois ela ainda doía muito.
- Quatro dias - ela respondeu. - Disseram para nos prepararmos para o pior, porque você poderia não passar da primeira noite... - ela fez uma pausa e engoliu em seco, tentando afastar as lágrimas que se juntaram em seus olhos. - Mas você está aqui, Mia, e isso é o nosso pequeno milagre do dia.
Observei Rach e senti uma ternura gigantesca pela minha amiga. Imaginava que não devia ser nada fácil para nenhum deles suportar aquela situação, mas todos pareciam estar tentando seguir da melhor maneira possível. De repente, me ocorreu que eu não sabia a causa do que quase havia me matado.
- O que aconteceu? Por que eu quase bati as botas dessa vez? Tipo, tirando o câncer terminal, claro.
Eu queria fazer uma gracinha, mas Rach não parecia no clima. Seu rosto ficou triste e ela pareceu temer me contar o que era, mas decidiu contar, mesmo assim.
- Seu tumor, ele... - ela pausou, suspirou e voltou a falar, após uma pausa -... se espalhou da medula óssea para outras partes como estômago, fígado e, mais recentemente, pulmões. Você teve uma pneumonia e ninguém conseguia te estabilizar, seus órgãos entraram em falência e todos achamos que seria seu fim. Mas, incrivelmente, a sua infecção diminuiu, seus órgãos voltaram a funcionar, até certo ponto, e você está aqui.
- Ah...
Era um pequeno milagre. Eu ia morrer, mas, naquele momento, não morri. Talvez houvesse uma razão para isso. Eu não estava conseguindo pensar muito a respeito do meu tratamento, ou sobre os desejos que eu tinha antes de partir porque eu sequer estava me mantendo acordada nos últimos dias, mas decidi que aquela era uma nova chance de fazer diferente, e era o que eu me concentraria para fazer. Talvez eu não vivesse tempo suficiente até ver meus amigos entrarem na faculdade, mas queria ver meus pais fazendo mais uma viagem de carro até Nova York, como fazíamos todos os anos no Natal, queria fazer uma viagem internacional até a Bélgica e experimentar o famoso chocolate belga, e, por Deus, queria realizar o sonho de Jules de me ver naquela praia, usando flores no cabelo e sentindo a brisa marítima tocar meu rosto.
Eu nunca havia conhecido o mar e esse era, sem dúvida, meu maior desejo antes de morrer.
Após alguns dias no quarto, iniciaram as sessões de quimioterapia. Não tinham a intenção de me curarem, mas, ao menos, me darem mais qualidade de vida. Junto às sessões de quimio, eu recebia uma dose de imunoterapia. Me perguntaram se eu queria testar um método novo para evitar de ficar careca, utilizando uma touquinha especial em cada sessão. Não que eu me importasse com isso, mas aceitei sem discussões a oferta. Meus cabelos não estavam caindo, mas, em compensação, eu estava quase 10 kg mais magra que o normal e minha aparência era péssima.
Um belo dia, consegui me levantar da cama e me olhei no espelho que haviam levado para eu me arrumar no quarto. Eu estava deplorável. Os cabelos castanhos, outrora brilhosos e sedosos, estavam ressecados, embolados, há muitos dias sem ver um shampoo, mas o pior era o resto.
As pontas dos meus dedos estavam amareladas e eu possuía muitas manchinhas avermelhadas pelo corpo, como se eu estivesse com hemorragia subcutânea. Petéquias, imaginei eu. Meus olhos estavam fundos, o rosto, pálido. Os lábios estavam ressecados e feridos e consegui observar a sonda de alimentação. Eu usava fraldas geriátricas por baixo do roupão do hospital e, desde que o tumor atingiu meus pulmões, eu passei a usar cânula nasal para levar o oxigênio até os meus pulmões de maneira eficaz.
Eu nunca fui, exatamente, a pessoa mais vaidosa do mundo. Eu gostava de me arrumar, mas não era uma deusa, como Rachel, que se arrumava para ir à padaria da mesma forma que eu me arrumava para ir à uma festa, mas com certeza aquela aparência decadente era pior do que eu já estivera em toda a minha vida. Prendi os cabelos, irritada, e voltei para a cama, desejando esquecer o reflexo do esqueleto que eu estava me tornando.

Após alguns dias, juntamente com o tratamento, recebi a notícia de que os tumores regrediram todos de tamanho. Eu ainda morreria, mas, ao menos, meu prognóstico era melhor que quando entrei naquele quarto. Estávamos começando a ter uma certa rotina no quarto. Meus pais ficavam comigo o tempo todo e me ajudavam a fazer todas as atividades que eu precisava fazer. Eu tentava estudar um pouco, embora soubesse que jamais voltaria à minha rotina normal de ir à escola, pois mamãe achava que essa seria uma forma de eu me manter ocupada. Meus amigos podiam me visitar das 13 às 19 e, todos os dias, nesse horário, Rachel e Jules apareciam no meu quarto. Jules parecia mais conformado com a situação, mas ele ainda evitava falar diretamente sobre a doença, ou minhas limitações. Ele estava cada dia mais cansado, assim como meus pais.
Rachel, por outro lado, parecia empenhada em me animar. Ela sempre aparecia animada, com seu perfume de baunilha, os cabelos negros esvoaçantes e um sorriso no rosto. Em um dos meus dias bons, ou seja, um dos dias onde eu consegui ficar mais acordada que dormindo e não tive dores, ela desandou a falar que estava flertando com Anthony, um garoto da nossa turma.
- Ele é uma graça - ela concluiu, após passar quase dez minutos explicando como ele havia começado a seguir ela no Instagram e curtido todas as suas fotos.
Anthony tinha cabelos loiros e olhos castanhos e era bonitinho. Não era exatamente meu tipo de cara, eu preferia morenos, mas se Rach estava contente, eu também estava.
- Pensei que ele fosse a fim da Caroline - falei, após ela discursar.
Rach passou os dedos sobre os lados, pensativa, enquanto Jules comia a comida que uma enfermeira gentil trouxe para ele e observava com certa diversão Rach.
- Talvez fosse - ela ponderou. - Mas não faz diferença. O importante é que ele me chamou para sair amanhã, não é o máximo?
- Não se alegre, Rach, ele já saiu com metade do colégio - disse Jules, que parecia se divertir com a situação.
- Não enche o saco, Jules. São só alguns beijinhos. O que poderia dar errado?
- Se você está dizendo...
Sorri. Era muito gostoso saber que eu ainda podia sorrir com as pessoas que eu gostava e perceber que ainda havia vida ao meu redor, eles não morreriam junto comigo, mas ao mesmo tempo, esse pensamento me deixou melancólica. Tudo que eu mais queria era aproveitar meu resto de vida, mas não conseguia imaginar uma forma de fazer isso estando naquele quarto.
Eu precisava sair dali, convencer o Dr. Richard que eu deveria passar meus últimos meses fazendo coisas que eu amava, e não presa em uma cama de hospital.
- Dez dólares pelos seus pensamentos - ele disse, me tirando do meu devaneio. Seus olhos azuis brilhavam para mim.
- Ah, não é nada. É só... bobagem.
- Nada do que você fala é bobagem.
Senti certa tristeza na voz de Jules, então sorri para acalmar meu amigo.
- Só estava pensando que queria poder fazer algo legal antes de... - me interrompi, antes de falar "morrer" porque percebi o desconforto de Rach e Jules - Enfim. Não queria passar tanto tempo nesse hospital decadente que não combina com o outfit de Rachel.
Ela sorriu, tristemente, e falou baixinho.
- Era o que eu mais queria, Mia, ver você bem e fora daqui, mas mesmo que você esteja sendo tratada como um milagre, acho improvável que te liberem tão cedo.
Ela estava certa. Me chamavam de milagre porque raramente pessoas com tamanha destruição tumoral quanto eu conseguiam passar mais do que alguns dias, muito menos fazer com que os tumores regredissem, mas, de certa forma, eu consegui, então, por que não? Por que não tentar fazer meus últimos dias valerem à pena. Eu estava decidida: no dia seguinte, conversaria com Dr. Richard e com meus pais para solicitar que interrompessem o tratamento para que eu fosse para casa. Aquele seria o início da minha jornada pré morte.

7 meses Onde histórias criam vida. Descubra agora