Capítulo Único

27 8 5
                                    

 Numa sociedade de pessoas domesticadas, diversas, o ódio se instaurou levando corrupção ao íntimo da mais pura alma.

Os fracos, impulsionados por desejos vis, que nem lhes pertencia, enxergavam tudo que se aproximava como inimigo.

Não tardou para a sociedade se ver como refém de si.

Querendo mudança, muitos rogaram. Foram silenciados e tiveram os clamores abafados por invisíveis focinheiras, impostas pela temível criatura, o Estado.

Uma parcela de desocupados, se levantou como resistência.

Todas as noites, perambulavam perturbando o silêncio dos becos e vielas, das ruas e avenidas; tirando o sono dos omissos.

"Por que tanto barulho?", pensava Kándua, uma mulata.

A servidora pública podia ouvir gritos, não sabia dizer se eram vítimas ou só histéricos. Acabara de acordar.

Os sons da rua não colaboravam e a pobre vizinhança parecia se tornar mais agitada a cada nova semana.

Kándua se levantou, olhou pela janela e era madrugada, alguns jovens, obviamente embriagados, com cartazes revolucionistas rasgados eram responsáveis pela barulheira:

— Existem pessoas tentando dormir! — gritou da janela.

— Conformista! — responderam os jovens revolucionários.

Kándua foi à sala, olhou o velho relógio e ele marcava 4:40 da manhã. "Já era a minha hora de acordar mesmo!", pensou.

Na precária cozinha, tinha um pão duro, comprado há dois dias, que ela cortou em finas fatias, passou margarina e levou ao forno. Preparou um café fraco para economizar pó — que precisava durar por todo o mês — e foi ao banho.

Arrumou-se, comeu e saiu para o trabalho.

As ruas da periferia ficavam mais feias a cada dia, zigue-zagar contornando os bêbados e drogados era desnecessariamente incômodo, deveras melancólico.

Ao fim da rua de sua casa, estava uma larga avenida que ligava a área pobre ao resto da cidade.

"Viva Saudável!", dizia um banner na esquina.

Ela seguiu ao interior do edifício de concreto com uma desgastada pintura branca, que todos conheciam como clínica.

— Bom dia, Afu! — cumprimentou o porteiro, senhor cansado que pontualmente às quatro chegava sem errar.

— Criança! — Sua voz rouca cumprimentou, seguida de um cansado sorriso. — Como está? Descansou bem?

— Acordei com rebeldes fazendo algazarra — reclamou, abraçando o velho homem. — Esses jovens me cansam!

— Então, se prepare! Um jovem chegou precisando de reparos. Parece o único do dia e me pareceu bem calmo...

— Ai! Os calmos são os mais difíceis. Obrigada! — sorriu, seguindo pelo corredor branco, rumo a sua sala, onde a ficha do jovem já estava sobre a sua mesa.

"Sala 1A. Jotona, sobrenome desconhecido. Não há parentes vivos. Vinte anos. Associado aos rebeldes. Acusado de vandalismo, crime de ódio, anarquismo e perturbação da ordem", resumiu a breve ficha em sua mente após lê-la aos suspiros.

Kándua seguiu à sala 1A.

Jotona parecia um adolescente. Com grandes cabelos cacheados, tinha pele escura e a calma em seu semblante beirava o aterrador — incomum para Kándua.

— Olá, Jotona. Irei acompanhá-lo — anunciou, fechando a porta ao passar. — Kándua Luvevuku — apresentou-se.

— Sou Jotona, já sabe. Bom dia! — cumprimentou, educado.

O Violento Potencial do Silêncio [CONTO]Onde histórias criam vida. Descubra agora